quarta-feira, 20 de agosto de 2025

COMO A UNIÃO EUROPEIA ESCORREGOU NA PRÓPRIA NARRATIVA

 


A Bússola para um Futuro soberano e digno na UE

 

A recente cimeira em Washington Trump-Zelensky seguida de autoconvidados europeus e as eleições norte-americanas serviram como um espelho implacável para a União Europeia... A UE escorregou na sua própria baba, na narrativa pegajosa e simplista que criou e da qual agora não consegue libertar-se. Pelos vistos insiste em não arredar caminho para poder levantar-se...

Trump foi pintado não como um político de ruptura do padrão estabelecido, com uma agenda "America First", mas como uma anomalia perigosa. Essa postura, foi profundamente incauta. Ignorou-se uma realidade fundamental: Trump não é um acidente, mas a expressão de uma corrente substancial da sociedade norte-americana (e de parte do mundo), cansada do globalismo e do custo percebido de alianças que, na sua visão, penalizam os EUA...

A UE vê-se numa posição de profunda vulnerabilidade. A aposta emocional, que mobilizou a opinião pública interna, deixou de fora a preparação para um cenário de negociação dura com um parceiro que não se rege pela sentimentalidade diplomática de Bruelas. O resultado foi uma cimeira onde a Europa, que tanto criticou Trump, se viu forçada a abordá-lo com cautela, quase com súplica, para assegurar compromissos básicos de economia e segurança. As quedas abruptas nas acções do setor de armamento alemão e britânico após a cimeira são um sintoma claro deste pânico: a perceção de que o guarda-chuva norte-americano pode não ser tão fiável expôs a fragilidade da autonomia estratégica europeia...

O mesmo mecanismo de simplificação aplicou-se a Vladimir Putin...

A razão repetida de que Putin ambiciona "conquistar a Europa até Lisboa" é um exemplo perfeito de como se cria um preconceito útil. É uma projeção dos medos europeus, não uma análise estratégica credível. A Rússia é a maior nação do planeta, com recursos naturais inimagináveis e uma densidade populacional baixíssima(1)...

A ideia de que Putin cobiça uma UE superpovoada, assoberbada por regulamentação e com tensões sociais crescentes é, no mínimo, questionável. Esta narrativa, no entanto, foi um ovo galado que vingou: serviu para mobilizar a opinião pública para uma guerra apresentada como um bem contra o mal, silenciando o debate sobre os custos reais e os objetivos finais...

Em 2022, a UE e o Reino Unido alegadamente bloquearam negociações de paz nascentes entre Kiev e Moscovo, numa altura em que um cessar-fogo seria mais viável. Agora, o mesmo bloco exige um cessar-fogo, mas apenas para dar tempo à Ucrânia de se rearmar; este cinismo estratégico que não escapa a muitos...

No cerne deste problema está um vício de fundo: a projeção. A elite europeia, habituada a trabalhar com medos e a manipular a vontade popular em vez de a informar com factos, projetou os seus próprios métodos e ambições sobre a Rússia. A rectórica sobre "democratizar" a Rússia escondia, muitas vezes, a velha doutrina colonial de "dividir para reinar", a esperança de que uma Rússia fragmentada em estados menores seria mais fácil de controlar e dos seus recursos mais fáceis de aceder.

A estratégia da NATO de impor valores à força, apoiando revoltas e mudanças de regime em nome da democracia, é percebida por Moscovo e por outros BRICS como a continuação do imperialismo ocidental por outros meios, um imperialismo mental, como bem se pode observar se temos em conta anúncios de funcionários da EU e da NATO...

A UE encontra-se agora numa encruzilhada humilhante... Putin, o "diabo" absoluto, é agora recebido com tapete vermelho em capitais mundiais, forçando a Europa a um realinhamento pragmático para o qual não está preparada... O grande desafio para a UE não é Trump nem Putin. O verdadeiro desafio é superar a sua própria infantilização política...  A UE não via o mundo real, com as suas complexidades e nuances. Via apenas o reflexo que ela própria tinha fabricado: um Trump caricatural, um Putin demoníaco, e uma imagem heroica de si própria como bastião incontestável da virtude... A UE debate-se com o facto de ter ficado presa no próprio adesivo que fabricou, escorregando no resíduo pegajoso da sua própria miragem...

O renascimento europeu exigirá mais do que estratégia; exigirá uma volta às suas raízes mais profundas. A Europa precisa de se re-situar, sim, não só geopoliticamente, mas, sobretudo, espiritualmente. A sua bússola já está gravada na sua história: a dignidade soberana do indivíduo, presente no humanismo cristão; a solidez das estruturas e da governação, testada pelo genius romano e católico; e a busca eterna pela ética e pelo bem comum, inaugurada pela filosofia grega. Redescobrir esta tríade de valores não é nostalgia; é a chave para forjar uma identidade forte e compassiva no mundo multipolar que agora se demarca.

António da Cunha Duarte Justo

Texto completo em Pegadas do Tempo: https://antonio-justo.eu/?p=10267

 

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