sábado, 29 de agosto de 2009

A SORTE DO MUNDO NA COLEIRA DUM CÃO


Da Falta de Sintonia com a Natureza
António Justo
Ali no monte de S. Julião mora um cão, o Faísca. Não é um desses caninos felizardos, dos de regaço, mas sim um prisioneiro que vê a sua liberdade reduzida a metro e meio de cadeado. A sua casota, encostada à casita da dona é o espelho duma vida desalentada. A única consolação que tem está no tacho atrasado e na voz longínqua dalgum irmão que, ao anoitecer, o convida a unir a sua voz ao hino do pôr-do-sol.

O Faísca, de olhos caídos, passa a maior parte da vida em posição meditativa, a sonhar talvez a Vida que os humanos não pensam…

Nas férias, a vida triste e negra do Faísca passou a ser iluminada por miminhos de fim da tarde que uma turista com ele repartia nos seus passeios habituais à natureza. Todos os dias, mal o cachorro sentia a sua passagem, logo iniciava uma dança de alegria acompanhada de grunhidos de amor recalcado. Um mar de vida em movimento, todo ele é suspenso pela coleira no fim da corrente, num vaivém de ondas, de maré enchente e maré vazante.

O cão estava já habituado às festinhas de Carola que me acompanhava sempre nos passeios na natureza. Um dia registou que só eu aparecia. Falei com ele, mas não lhe toquei. Então, o Faísca empoleirou-se no muro abanando a cauda e grunhindo à espera duma carícia; espera em vão. Apenas lhe lancei um sorriso e palavras carinhosas. Apesar da sua simpatia comunicativa, o cão recolheu-se parecendo esconder no rosto a mágoa de todas as carícias até então não recebidas.

No dia seguinte passei de novo com Carola que já de longe lhe atirava bocados de afecto timbrados por modos de mãe.

Na noite passada ela tinha chorado a sorte do mundo na coleira do Faísca. Também eu sentira apoderar-se de mim um nevoeiro triste que se apossava da minha consciência. Sentira a aragem dum ar húmido de culpa colectiva ainda visível na aura das lágrimas do seu rosto.

Desta vez, o Faísca abana a cauda, mas já não salta logo para o muro. O cachorro encosta-se contra o costume ao ferro da sua prisão. Um molho de sentimentos feridos parecia ruminar a falta do dia anterior. Olha a Carola absorto numa posição que revelava o sentimento duma relação ofendida. Na sua imagem via a dele. A dignidade acordada naqueles furtivos encontros lembra a empatia ferida à sombra dum eu perdido. A sua natureza de cão sofre, naquela ausência, toda a ausência duma vida condensada na experiência daquele dia.

Depois dalguns momentos de hesitação, o cão salta para cima do muro e dá rédeas ao seu folgar. Nos seus olhos e gestos, numa entrega total, dança toda a criatura, sem discriminação. Faísca e Carola, irmanados na mesma admiração, comprazem-se repondo o estado original da criação por alguns momentos.

Pouco depois a vida continua atrás dos muros: uma vida sem aurora para a dona e para o cão. Ambos lambem as feridas da pobreza, do mesmo lado, no mesmo canto da vida.

Na hierarquia da dor, o sol do bem parece não querer chegar aos inocentes. A miséria da vida teima andar de mãos dadas com a pobreza de espírito e com a exploração.

Num tempo que aos outros pertence, o Faísca e a dona continuam a esperar pela luz do respeito que os outros faz crescer. No caso doutros “Faíscas”, a dor resulta da crueldade e da superficialidade no viver. Apesar do queixar comum, e das queixas ladradas em casas de “pessoas de bem”, a vida canina continua a ser uma vida na desonra, à medida da consciência desonrada de quem os trata assim.
António da Cunha Duarte Justo
Pegadas dos Animais
antoniocunhajusto@googlemail.com

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