Uma Narrativa sobre a Unidade Trinitária do Ser
Havia um tempo antes do
tempo, quando tudo ainda era pura possibilidade suspensa sem forma, vazio em
silêncio. 
Então o movimento nasceu. Não
um, mas três, unidos numa dança eterna e desta dança surgiu tudo o que é: o
visível e o invisível, a ordem e o caos, o peso e a leveza.
I. A Grande Respiração
No princípio da criação, o
Universo começou por respirar. Nessa respiração criou três moradas como expressão
de uma só morada.
A primeira morada é a Casa
do Ar, com os seus sete véus
transparentes. A Troposfera, mais próxima, é como a pele que sente o calor e o
frio, onde as nuvens são pensamentos e as tempestades, emoções intensas. Acima,
a Estratosfera guarda o escudo protetor do ozónio, assim como a consciência
protege o ser das radiações destrutivas do caos exterior que nos rodeia. Mais alto ainda, a Mesosfera, a Termosfera e aí,
cada camada assemelha-se a um degrau na escada entre o tangível e o infinito,
entre o peso e a leveza absoluta.
A segunda morada é a Casa
da Terra, com os seus três reinos
concêntricos. A Crosta é a face visível, onde pisamos e plantamos, onde
construímos e deixamos pegadas numa superfície de encontros e despedidas. O
Manto, logo abaixo, pulsa em movimentos lentos e poderosos, correntes
invisíveis que movem continentes ao longo de eras e que lembram as correntes
profundas da psique que movem civilizações. E no centro secreto, situa-se o
Núcleo flamejante, coração de ferro e níquel que gera o campo magnético, que é
a bússola invisível que orienta tudo o que vive sobre a superfície.
A terceira morada é a Casa
do Homem, reflexo e súmula da casa
do Ar e da Casa da Terra. A Cabeça contempla os céus e sonha com estrelas; o
Tronco abriga os órgãos vitais, câmara central onde bate o coração e os pulmões
respiram o ar da primeira morada; os Membros tocam a terra, caminham,
trabalham, abraçam, fazendo assim a ponte entre o espírito que ascende e a
matéria que sustenta.
Mas o mistério não termina
aí.
 
II. O Segredo Trinitário
Havia um velho sábio que
vivia numa aldeia entre montanhas. Chamavam-lhe Elias das Três Fontes, pois
ele costumava dizer que dentro de cada pessoa brotavam três nascentes que eram
uma só água.
Um dia, uma jovem chamada
Miriam veio ter com ele e perguntou-lhe:
“Mestre, sinto-me
dividida. O meu corpo quer uma coisa, a minha mente outra, e algo mais profundo
em mim anseia por um caminho que nem sei nomear. Sou três pessoas em conflito
ou uma só em confusão?”
O velho sorriu e apontou o
seu cajado para o céu:
“Vês a atmosfera? Parece
vazia, mas sustenta sete camadas distintas, cada uma com a sua função. A camada
mais baixa toca a terra e carrega chuva; a mais alta toca o espaço e brilha com
auroras. São sete, mas é uma só atmosfera. Agora olha para baixo.”
Bateu no chão com o seu
cajado: 
“A terra parece sólida,
mas dentro dela há três mundos: a casca onde pisamos, o manto que ferve
devagar, e o núcleo de fogo. Três, mas uma só Terra. E tu, Miriam, és feita à
mesma imagem.”
Miriam sentou-se a seus
pés e implorou:
"Explique-me, por
favor."
 
III. A Tríade Humana
“O Corpo”, começou Elias, “é
como a crosta terrestre e a troposfera juntas. É a tua parte visível, tangível,
o templo onde habitas. Ele cresce da terra, come da terra, volta à terra. Mas
sem as outras dimensões, seria apenas matéria inerte, como uma pedra. O corpo é
a tua palavra feita carne, a tua presença no mundo visível.”
Elias respirou fundo,
levou a mão ao peito e continuou:
“A Alma é como o manto da
Terra e as camadas intermediárias do ar. É a sede do teu "eu" único e
irrepetível, a tua personalidade, memórias, emoções, vontade e razão. É onde
reside a imagem de Deus em ti: a capacidade de amar, de escolher, de criar. A
alma anima o corpo, como o manto aquece a crosta, como o vento move as nuvens.
Aristóteles dizia bem: a alma é a forma do corpo, aquilo que transforma matéria
em vida. Sem a alma, o corpo seria um robot, mas sem o corpo, a alma não teria
ferramenta para apalpar o mundo. E o luzeiro da Idade Média, Tomás de Aquino
completava ao dizer que a alma é o que confere ao corpo a sua existência e as
suas funções vitais, mas, por ser espiritual, possui a capacidade de subsistir
por si só após a morte do corpo, o que fundamenta a sua imortalidade.”
Elias olhou para o céu,
onde brilhavam as primeiras estrelas.
“O Espírito” disse
ele, “é como o núcleo incandescente da Terra e a ionosfera que toca o
cosmos. É a tua centelha divina, o fôlego que Deus soprou em Adão, a parte de
ti que reconhece o Infinito porque vem do Infinito. O espírito não é
"teu" da mesma forma que a alma é, ele é a ponte, a conexão, o ponto
de contato entre a tua finitude e o Mistério eterno. É por isso que podes orar,
contemplar, transcender-te. Ele é, como na narrativa sagrada, o amor que nasce
entre Pai e Filho.”
Miriam franziu a testa.
“Mas então somos três
seres separados dentro de um só?”
IV. A Dança Trinitária
“Não!” gritou o sábio com
voz animada. “Essa é a armadilha do pensamento dualista, que só vê opostos: ou
é um, ou são muitos. Mas a realidade é trinitária, e o três não é divisão, mas
comunidade!”
Para se tornar mais
compreensível, Elias desenhou três círculos entrelaçados na areia.
"Olha aqui: o Pai, o
Filho e o Espírito Santo são três pessoas, mas um só Deus. Não três deuses, não
um deus com três máscaras, mas três em relação perfeita. E nós, feitos à imagem
dessa Trindade, somos também relação. O teu corpo não existe sem a tua alma
para animá-lo; a tua alma não se expressa sem corpo; e o teu espírito seria
palavra não pronunciada se não tivesse corpo e alma como instrumento.”
Então Elias apagou as
linhas divisórias entre os círculos com a mão.
“É como a água, o gelo e o
vapor. Três estados, numa só substância. É como a raiz, o tronco e os ramos.
Três partes, mas uma só árvore. Tu és uma unidade tripartida, ou melhor, uma
trindade unificada.”
Miriam perguntou baixinho:
"E a atmosfera e a
Terra são elas as mestras?"
Elias assentiu.
"Sim, são professores
sossegados!
A atmosfera não é só ar
parado, formada de camadas de ar em relação constante: o calor sobe da
superfície, o frio desce do espaço, e no encontro nascem os ventos, as chuvas,
a vida. A Terra não é pedra morta, ela é núcleo em brasa que alimenta o manto
que move a crosta que sustenta vida. Tudo é relação, Miriam, tudo é movimento trinitário.”
V. O Drama da separação
“Então qual é a razão”,
perguntou Miriam com a voz trémula, “por que me sinto dividida?”
O rosto do sábio escureceu.
“Porque a humanidade
esqueceu a dança. Vivemos como se fôssemos apenas corpo, buscamos só prazer
material, acumulamos coisas, idolatramos a aparência. Ou vivemos como se
fôssemos só alma, presos na mente, nas emoções neuróticas, nos jogos de poder
do ego. Ou fugimos para um espiritualismo desencarnado, desprezando o corpo e o
mundo como se fossem meras prisões.”
Elias levantou-se, abriu
os braços e falou com voz séria e calorosa:
“A visão dualista divide
tudo em bem versus mal, espírito contra a matéria, céu contra a terra. É a
tentação maniqueísta que simplifica o mundo em preto e branco. E dela nasce a
política maquiavélica: "os fins justificam os meios", porque se a
realidade é só dois lados em guerra, vale tudo para "o meu lado"
vencer.”
Miriam erguendo os olhos.
"E qual é a
alternativa?", perguntou ela.
Elias inclinou-se na sua
direção e sussurrou:
“A visão trinitária! Reconhecer
que bem e mal não são forças iguais em combate, mas que o bem é trinitário; é
Verdade, Beleza e Bondade em dança, enquanto o mal é privação, ruptura da
relação. A política verdadeira não é dominar o adversário, mas buscar o bem
comum através do diálogo tripartido: eu, tu e o Bem que nos transcende e que
nos seria dado procurar juntos.” 
VI. A Jornada Interior
“Como posso então viver
integralmente?” – perguntou Miriam.
O velho Elias voltou a
sorrir, desta vez com gentileza e calma.
“Procura aprender com a
criação. A atmosfera cuida de cada camada, mas todas servem ao todo: proteger a
vida. A Terra mantém cada reino em sua função, mas todos colaboram: a crosta dá
suporte, o manto recicla e o núcleo fornece energia.” 
Então falou enfaticamente:
“Cuida do teu corpo como
quem cuida da crosta terrestre: com respeito, sem idolatria nem desprezo. Ele é
templo, não ídolo nem prisão. Come, dorme, movimenta-te, celebra a matéria como
dom de Deus. O mestre da galileia também amava a vida e porque ele convivia com
publicanos e pecadores, a ponto dos líderes religiosos da época, O acusaram de
ser "beberrão" e "comilão".
Elias continuou, com voz
calma e clara:
“Cultiva a tua alma
como quem cultiva o manto terrestre: educa a mente, refina as emoções,
fortalece a vontade. Lê, pensa, cria, ama, escolhe. A alma é o jardim onde
floresce a tua humanidade única. Mas lembra-te: o jardim precisa de terra
(corpo) e chuva do céu (espírito).”
Olhou intensivamente para
Miriam e colocou a mão na cabeça dela.
“Abre-te ao Espírito como
a crosta se abre para o calor do núcleo, como a troposfera se abre à luz do
sol.  Reza. Contempla. Silencia. 
Reconhece que não és
origem de ti mesma, mas resposta a um Chamamento divino.”
Os olhos
de Miriam brilharam. 
"E
quando as três dimensões dançam juntas?", perguntou ela.
Elias sorriu e a sua voz
soou como uma canção distante:
“Então és completamente
humana! 
Quando a tua cabeça vê o
mistério, o teu coração bate ao ritmo do amor e as tuas mãos se estendem-se em serviço,
então não és mais um indivíduo isolado, mas pessoa em relação: em paz contigo
mesma, em comunidade com os outros, em diálogo com Deus, e em harmonia com a
criação.”
VII. O Canto da Unidade
Naquela noite, Miriam
compreendeu. Deitou-se no chão e sentiu a crosta terrestre por baixo de si, o
manto invisivelmente pulsante por baixo dela e bem no fundo, o núcleo distante
e ardente que alimentava o campo magnético que a protegia dos ventos solares. Respirou
fundo e sentiu o ar da troposfera a fluir para os seus pulmões, subindo pelos
brônquios, enchendo o seu sangue de oxigénio, enquanto bem acima a estratosfera
a protegia da luz ultravioleta, e ainda mais alto a ionosfera dançava com as
partículas do espaço.
E dentro de si ela sentia:
o seu corpo cansado, mas vivo, enraizado na terra, a sua alma finalmente em
paz, já não dividida, mas unida: mente clara, coração aberto, vontade
direcionada e o seu espírito, aquela centelha terna que suspirava suavemente o
"Abba" para o mistério que ela carregava.
Ela não era uma nem era
três. Ela era uma em três e três em uma, como a terra, como o ar, como a
própria Trindade. E, nesse momento, ela compreendeu o antigo ditado bíblico:
"Façamos o homem à
nossa imagem e à nossa semelhança.”
Não "à minha
imagem", pois isso seria unidade sem relação, mas "à nossa": a
imagem trinitária, comunitária, tecida pelas relações. Pois a pessoa não é um
átomo isolado, um ego, mas um nó numa teia infinita de amor.
O Chamamento
Miriam voltou à aldeia
transformada. Não tinha respostas mágicas para todas as questões da vida, no
entanto, transportava consigo uma chave, uma hermenêutica do coração: ver tudo -
natureza, sociedade e si mesma - não com olhos dualistas (nós versus eles,
corpo versus alma), mas com olhos trinitários.
Miriam ensinou às
crianças:
“Vós sois como a Terra: tendes
uma superfície que todos veem que é o vosso corpo, um reino interior que ferve
de vida que é a vossa alma e um fogo no centro que o liga ao mistério e que é o
vosso espírito. Não desprezem nenhuma destas camadas e não adorem nenhuma
sozinha! Quando reconhecerem isto vivereis em paz convosco mesmos e com os
outros."
Aos adultos envolvidos nas
discussões políticas, ela disse:
“Deixem de acreditar que a
solução é destruir o inimigo, como fazem os adeptos da visão maniqueísta.
A verdade não surge quando
dois lutam entre si, mas quando três falam em conjunto: eu, tu e a verdade que
transcende ambos, na relação eu-tu-nós.
E aos místicos
arrebatados, ela disse:
"Deus não criou a
matéria para a odiarmos. O Verbo fez-se carne! A salvação não consiste em
escapar do corpo, mas em transfigurá-lo como Cristo, o Ressuscitado: não um
espírito sem corpo, mas um corpo glorificado, permeado de luz."
E assim, de casa em casa,
de coração em coração, Miriam plantou a semente da visão integral que tem o
melhor exemplo no protótipo Jesus Cristo: E assim, de casa em casa, de coração
em coração, Miriam lançou as sementes de uma visão integral do ser:
• Atmosfera, Terra e
humanidade: três mestres de uma só lição.
• Corpo, alma e espírito:
três dimensões de um único ser.
• Pai, Filho e Espírito
Santo: três pessoas de um só amor.
E aqueles que
compreenderam a dança trinitária começaram a viver de forma diferente: já não como
máquinas (meros corpos), nem como fantasmas (só alma ou mente), nem como egos
insuflados (mera necessidade), mas como pessoas inteiras, como microcosmos que
refletem o Macrocosmo, templos vivos nos quais a matéria é abençoada, a
consciência é iluminada e o Espírito sopra livremente. 
Pois no princípio era a
Relação, o Verbo, e a relação pessoal era com Deus, e a relação era Deus. Tudo
o que existe, das galáxias aos átomos, das montanhas aos pensamentos, é o eco
desta dança eterna: Três em Um e Um em Três. Uma unidade que não anula a diversidade
e uma diversidade que não destrói a unidade.  
Um segredo que não se
revela em fórmulas, mas na vida vivida! 
Não há respostas prontas
para as grandes questões. A única forma de as encontrar é viver a vida
plenamente; pois a sabedoria, o autoconhecimento, nasce da ação e da
contemplação silenciosa do próprio caminho. O divino, a origem e o propósito, a
essência da existência, revela-se na experiência humana concreta: no amor, no
sofrimento, na superação; isto é, na forma como vivemos e como nos relacionamos
com o mundo.
Reflexão Final
Caro/a Leitor/a,
esta narrativa tenta tecer
a realidade de que fazemos parte e que simultaneamente nos questiona. As
camadas da atmosfera e da geosfera são aqui apresentadas como análogas às
dimensões humanas numa história que procura transcender o reducionismo dualista
e celebrar a complexidade trinitária da realidade.
A estrutura da narrativa
reflecte o seu conteúdo: começa com a cosmologia (atmosfera e terra), continua
com a antropologia (corpo, alma, espírito) e culmina na teologia (a imagem
trinitária), regressando finalmente e repetidamente, à existência, à questão:
Como devemos viver tudo isto?
Ao criar esta narrativa,
que entende a realidade como uma metáfora para algo que a transcende, foi
importante para mim não confundir visões 
do mundo nem o método de conhecimento para acesso à realidade.
A integração de uma visão
monista da realidade, em que tudo emerge de uma única fonte, com um método
dualista-analítico que distingue sujeito e objecto na investigação encontra a
sua síntese numa perspectiva relacional-pessoal. Isto permite abraçar a concepção
trinitária da realidade divina (como a "fórmula" de toda a existência
e de toda a realidade): uma unidade essencial expressa numa multiplicidade de
pessoas em relação mútua, transcendendo assim tanto o monismo rígido como o
dualismo irreconciliável.
Que esta narrativa sirva
como ferramenta de autorreflexão e como forma de transmitir uma visão integral
do ser e da maneira de estaa, sem perder a essência da relação, o jogo vivo do
pessoal. Que seja uma semente que brote em muitos corações.
António da Cunha Duarte
Justo
Teólogo e Pedagogo
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