sábado, 23 de agosto de 2025

O ESCÂNDALO DO ABUSO SEXUAL INFANTIL NA ALEMANHA E EM PORTUGAL

 

A Invisibilidade que dói: 16.354 Casos na Alemanha e 1.041 em Portugal

 

Os números vindos da Alemanha são alarmantes: em 2024, mais de 16 mil crianças foram oficialmente registadas como vítimas de violência sexual. São estatísticas frias que escondem dramas quentes e insuportáveis. Três quartos destas vítimas tinham menos de 13 anos, a maioria meninas, enquanto os suspeitos são sobretudo homens: 95%. Os dados oficiais são a ponta do icebergue. O abuso sexual infantil vive do silêncio e da vergonha, que impedem muitas vítimas de falarem, como alerta a psicóloga infantil alemã Ursula Enders.

Nos últimos dez anos, o número de casos confirmados não parou de crescer. Em 2014 eram pouco mais de 14 mil, em 2023 ultrapassaram 18 mil…

Em Portugal, a situação não é menos preocupante. Segundo o Instituto Nacional de Estatística (INE), em 2024 foram registados 3.237 crimes contra menores, dos quais 1.041 correspondem a abuso sexual infantil. As vítimas são maioritariamente meninas (79,6%), enquanto os suspeitos são homens em 94% dos casos (1)...

Ou seja, o que se verifica na Alemanha e em Portugal também acontece, em maior ou menor escala, noutros países, inclusive no Brasil, onde casos semelhantes têm vindo a ser revelados com frequência. Um problema crucial é o facto de problemas ou questões não noticiadas com relevância nos media são considerados não existentes na sociedade nem para os vindouros porque o que conta são as fontes e estas são o noticiado...

A violência contra crianças é talvez o maior tabu da nossa era. Preferimos não olhar, não falar, não mexer em feridas que expõem falhas familiares, institucionais e políticas...

O tema é delicado e muitas vezes evitado, mas o silêncio social e institucional não é neutro, ele só protege e favorece os agressores...

O ciclo noticioso privilegia o sensacionalismo, mas raramente se aprofunda nas causas, nas falhas das instituições, na falta de apoio às vítimas.

Em vez de iluminar as sombras, grande parte dos media limita-se a acender fogos de artifício momentâneos para captar leitores. Mas uma sociedade que se alimenta apenas de títulos fortes sem se deter na essência do problema acaba por se tornar cúmplice da sua perpetuação...

A responsabilidade não é apenas dos governos ou das escolas, mas também da comunicação social e dos cidadãos. Denunciar, escutar, apoiar e exigir políticas eficazes são passos que cabem a todos...

O abuso sexual infantil não é apenas um crime, é uma violação brutal da dignidade humana, que deixa marcas profundas e muitas vezes irreversíveis. A defesa das crianças deve estar acima da proteção de imagens institucionais ou familiares...

É urgente assumir que defender a infância é defender o futuro e para isso necessita-se um jornalismo consciente, políticas sensatas e sociedade engajada que possam quebrar o silêncio que protege o abuso.

António da Cunha Duarte Justo

Texto completo e nota em Pegadas do Tempo: https://antonio-justo.eu/?p=10282

sexta-feira, 22 de agosto de 2025

A TRIBUNA DE AR DE BRUXELAS

Dizia-se que na Cidade da Névoa os oradores não tinham pés. Caminhavam sobre o ar, não como santos, mas como marionetas sustentadas por cordas invisíveis. Chamavam-se a si mesmos Corifeus do Amanhã e, em todas as ocasiões, repetiam discursos tão bem polidos que já não tinham rosto, apenas brilho.

Nas praças, os cidadãos viam folhas verdes caindo dos palácios elevados. Eram belas, frescas, e diziam ser fruto de grandes plantações. Mas ninguém encontrava as árvores. “A colheita está garantida!”, proclamavam os corifeus. O povo aplaudia, embora não se lembrasse de ter semeado nada.

No alto, os oradores vestiam mantos de valores e fatos engravatados que ondulavam como bandeiras. Não traziam fardas, o seu uniforme era o dogma, programa. E, em vez de luz, brandiam verdades afiadas como lanças, que lançavam ao vento para que o vento as trouxesse de volta, intactas.

Diziam agir pelo futuro, mas bebiam apenas do passado, um passado que, nas suas bocas, se disfarçava de novidade científica. Semeavam joio nos campos invisíveis e, quando a fome vinha, alimentavam-se de pães que ninguém sabia de onde vinham, mas que tinham o sabor amargo da consciência perdida.

Um velho da cidade, que todos apelidavam de Guardador de Memórias, aproximou-se certo dia e perguntou:

- E se deixassem cair a lança e pegassem na enxada?

Riram. O riso deles tinha o som seco de galhos mortos.

Com o tempo, o povo começou a reparar que a democracia, que antes era altar e espelho, se tornara um escudo que cegava quem o erguia. E, nas noites mais silenciosas, alguns juravam ouvir o canto do cuco, o pássaro que deposita o ovo no ninho alheio e segue viagem.

Foi então que, sem aviso, a névoa começou a rarear. O chão voltou a ser visível. E muitos descobriram que os corifeus, afinal, tinham pés, mas estavam sujos de lama.

Nessa manhã, não houve folhas a cair. Nem pão a repartir. Apenas a terra nua, esperando quem tivesse coragem de plantar.

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo: https://antonio-justo.eu/?p=10279

quinta-feira, 21 de agosto de 2025

109 INCENDIÁRIOS NA PRISÃO EM PORTUGAL

 Em Portugal, 109 pessoas estão actualmente privadas de liberdade por crimes de incêndio florestal, segundo dados da Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais de 20 de agosto de 2025. Do total, 42 já cumprem pena definitiva, 39 aguardam julgamento em prisão preventiva, 24 foram considerados inimputáveis e estão internados em instituições psiquiátricas e 4 esperam que a decisão transite em julgado.

As penas aplicadas oscilam entre dois e oito anos de prisão efectiva, podendo ser agravadas em casos de dolo ou reincidência. Em situações de menor gravidade, alguns condenados cumprem penas suspensas com vigilância eletrónica, sobretudo nos meses de maior risco de incêndio.

Os perfis mais comuns entre os arguidos são de homens entre os 30 e 55 anos, muitas vezes associados a problemas de alcoolismo, perturbações psiquiátricas ou exclusão social. Uma parte significativa dos casos resulta de fogo posto com dolo, embora subsistam situações de negligência ligadas ao uso imprudente do fogo em atividades agrícolas.
Segundo órgãos de informação portuguesa o número de pessoas detidas por incêndio florestal em 2025 já chega a 94.
A Polícia Judiciária (PJ) deteve pelo menos 52 suspeitos deste crime até meados de agosto de 2025. Cerca de metade dessas detenções ocorreram em agosto.
A Guarda Nacional Republicana (GNR) fez 42 detenções em flagrante entre 1 de janeiro e 13 de agosto.

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo: https://antonio-justo.eu/?p=10271

quarta-feira, 20 de agosto de 2025

COMO A UNIÃO EUROPEIA ESCORREGOU NA PRÓPRIA NARRATIVA

 


A Bússola para um Futuro soberano e digno na UE

 

A recente cimeira em Washington Trump-Zelensky seguida de autoconvidados europeus e as eleições norte-americanas serviram como um espelho implacável para a União Europeia... A UE escorregou na sua própria baba, na narrativa pegajosa e simplista que criou e da qual agora não consegue libertar-se. Pelos vistos insiste em não arredar caminho para poder levantar-se...

Trump foi pintado não como um político de ruptura do padrão estabelecido, com uma agenda "America First", mas como uma anomalia perigosa. Essa postura, foi profundamente incauta. Ignorou-se uma realidade fundamental: Trump não é um acidente, mas a expressão de uma corrente substancial da sociedade norte-americana (e de parte do mundo), cansada do globalismo e do custo percebido de alianças que, na sua visão, penalizam os EUA...

A UE vê-se numa posição de profunda vulnerabilidade. A aposta emocional, que mobilizou a opinião pública interna, deixou de fora a preparação para um cenário de negociação dura com um parceiro que não se rege pela sentimentalidade diplomática de Bruelas. O resultado foi uma cimeira onde a Europa, que tanto criticou Trump, se viu forçada a abordá-lo com cautela, quase com súplica, para assegurar compromissos básicos de economia e segurança. As quedas abruptas nas acções do setor de armamento alemão e britânico após a cimeira são um sintoma claro deste pânico: a perceção de que o guarda-chuva norte-americano pode não ser tão fiável expôs a fragilidade da autonomia estratégica europeia...

O mesmo mecanismo de simplificação aplicou-se a Vladimir Putin...

A razão repetida de que Putin ambiciona "conquistar a Europa até Lisboa" é um exemplo perfeito de como se cria um preconceito útil. É uma projeção dos medos europeus, não uma análise estratégica credível. A Rússia é a maior nação do planeta, com recursos naturais inimagináveis e uma densidade populacional baixíssima(1)...

A ideia de que Putin cobiça uma UE superpovoada, assoberbada por regulamentação e com tensões sociais crescentes é, no mínimo, questionável. Esta narrativa, no entanto, foi um ovo galado que vingou: serviu para mobilizar a opinião pública para uma guerra apresentada como um bem contra o mal, silenciando o debate sobre os custos reais e os objetivos finais...

Em 2022, a UE e o Reino Unido alegadamente bloquearam negociações de paz nascentes entre Kiev e Moscovo, numa altura em que um cessar-fogo seria mais viável. Agora, o mesmo bloco exige um cessar-fogo, mas apenas para dar tempo à Ucrânia de se rearmar; este cinismo estratégico que não escapa a muitos...

No cerne deste problema está um vício de fundo: a projeção. A elite europeia, habituada a trabalhar com medos e a manipular a vontade popular em vez de a informar com factos, projetou os seus próprios métodos e ambições sobre a Rússia. A rectórica sobre "democratizar" a Rússia escondia, muitas vezes, a velha doutrina colonial de "dividir para reinar", a esperança de que uma Rússia fragmentada em estados menores seria mais fácil de controlar e dos seus recursos mais fáceis de aceder.

A estratégia da NATO de impor valores à força, apoiando revoltas e mudanças de regime em nome da democracia, é percebida por Moscovo e por outros BRICS como a continuação do imperialismo ocidental por outros meios, um imperialismo mental, como bem se pode observar se temos em conta anúncios de funcionários da EU e da NATO...

A UE encontra-se agora numa encruzilhada humilhante... Putin, o "diabo" absoluto, é agora recebido com tapete vermelho em capitais mundiais, forçando a Europa a um realinhamento pragmático para o qual não está preparada... O grande desafio para a UE não é Trump nem Putin. O verdadeiro desafio é superar a sua própria infantilização política...  A UE não via o mundo real, com as suas complexidades e nuances. Via apenas o reflexo que ela própria tinha fabricado: um Trump caricatural, um Putin demoníaco, e uma imagem heroica de si própria como bastião incontestável da virtude... A UE debate-se com o facto de ter ficado presa no próprio adesivo que fabricou, escorregando no resíduo pegajoso da sua própria miragem...

O renascimento europeu exigirá mais do que estratégia; exigirá uma volta às suas raízes mais profundas. A Europa precisa de se re-situar, sim, não só geopoliticamente, mas, sobretudo, espiritualmente. A sua bússola já está gravada na sua história: a dignidade soberana do indivíduo, presente no humanismo cristão; a solidez das estruturas e da governação, testada pelo genius romano e católico; e a busca eterna pela ética e pelo bem comum, inaugurada pela filosofia grega. Redescobrir esta tríade de valores não é nostalgia; é a chave para forjar uma identidade forte e compassiva no mundo multipolar que agora se demarca.

António da Cunha Duarte Justo

Texto completo em Pegadas do Tempo: https://antonio-justo.eu/?p=10267

 

domingo, 17 de agosto de 2025

LIDERANÇA ENTRE EGOISMO E ALTRUÍSMO

 

Liderar é caminhar na corda bamba entre o eu que se afirma e o nós que se constrói

 

Do eterno diálogo entre o “eu” e o “nós”  (entre o eu e as circunstâncias) nasce a tensão que marca toda a vida em sociedade: a relação entre quem dirige e quem segue, entre o indivíduo que se afirma e a comunidade que procura dar consistência ao caminho. É dessa tensão que surgem os líderes, chamados a representar o coletivo perante cada pessoa, e a oferecer uma visão orientadora que tanto pode abrir horizontes como impor limites...

A liderança nunca é neutra...

Desde que o ser humano tomou consciência de si - como expresso no relato bíblico de Adão e Eva – nasceu uma tensão inevitável: afirmar-se sem perder o vínculo ao coletivo (a Deus). Daí brotam a comunidade, a história e as instituições que tanto nos apoiam como nos condicionam...

A História raramente recorda o povo anónimo e os hesitantes. Exalta a memória da ousadia dos vencedores e o arrojo dos que avançam. Daí a tentação de acreditar que egoísmo e temeridade são virtudes sustentáveis...

O olhar humano procura sempre uma luz exterior. Por isso deixamo-nos guiar, com frequência, por aqueles que conseguem a dianteira e assumem o papel de líderes...

Liderar exige coragem para romper barreiras e ousadia para inovar. Mas um verdadeiro líder sabe também parar, escutar e deixar que a mudança respire. Liderança não é apenas avanço, é também discernimento: o egoísta teme perder, o altruísta teme não servir, mas só o sábio reconhece que nenhum deles pode liderar sozinho.

Hannah Arendt lembrava: “O poder só é efetivo enquanto os homens se mantêm unidos.” O equilíbrio entre afirmação pessoal e serviço ao coletivo é o que transforma autoridade em liderança genuína.

O líder, que seja uma personalidade, sabe quando quebrar e quando construir; sabe que a dúvida criativa ou até o fracasso fazem parte do processo e não o invalida...

Não é bom demonizar o egoísmo, pintado-o como vício absoluto. Há um “egoísmo saudável” que nasce do autoconhecimento e da autopreservação e torna o altruísmo sustentável...

Talvez a grandeza da liderança esteja justamente aqui: na consciência de que a poesia da vida não acontece nas ordens nem nas revoluções, mas nos intervalos entre elas...

António da Cunha Duarte Justo

Texto completo em Pegadas do Tempo: https://antonio-justo.eu/?p=10252

 

A Geopolítica da Mentira e a Guerra como Negócio

 

UM NOVO TRATADO DE TORDESILHAS?

 

... O recente encontro entre Putin e Trump não é um mero acaso diplomático: é mais um movimento num tabuleiro geopolítico onde a guerra, o consumismo e a pressão social servem para distrair as massas do essencial que é o poder e o controle.

Os dois blocos - Rússia de um lado e os EUA  e a NATO do outro - alimentam-se da mentira...

A Ucrânia é o campo de batalha onde se joga muito mais do que território, ela é a luta pela hegemonia global...

Estamos perante um novo Tratado de Tordesilhas, onde as potências redesenham o planeta conforme a sua conveniência. Tal como Espanha e Portugal dividiram o mundo no século XV, hoje EUA, China, Rússia e Europa disputam esferas de influência... a Rússia e o Ocidente travam uma guerra de narrativas, onde a soberania dos Estados é secundária perante os interesses dos grandes blocos. Ao contrário do passado, a guerra não é apenas territorial é também económica, tecnológica e ideológica...

Enquanto o filósofo Immanuel Kant sonhava com uma paz perpétua, o pensamento de Leo Strauss (e dos seus discípulos neoconservadores como Paul Wolfowitz e Robert Kagan) domina a política actual, segundo a qual a paz leva à decadência, a guerra mantém a ordem...

Por seu lado, Noam Chomsky denuncia que as revoluções coloridas (como a Laranja na Ucrânia, 2004) foram operações de mudança de regime apoiadas pelo Ocidente...

A lei moral é vista como instrumento de controle, não de ética. E, segundo esta lógica darwinista, os fortes devem dominar os fracos...

Os media europeus e norte-americanos, seguindo a lógica da "Manufacturing Consent" (como definido por Edward S. Herman e Noam Chomsky), transformaram Putin no novo Hitler, porque uma população assustada aceita melhor a guerra...

A Ucrânia é o pretexto, mas o verdadeiro objectivo é enfraquecer a Rússia, conter a China e garantir que o dólar e o complexo militar-industrial continuem a dominar o mundo...

Torna-se muito difícil não se deixar enganar. Por trás das bandeiras, dos discursos moralistas e das "causas justas", há sempre interesses obscuros. A guerra na Ucrânia não é sobre liberdade é sobre poder, como demonstra Christopher Layne ("The Peace of Illusions"). O encontro Putin-Trump não é sobre diplomacia é sobre realinhamentos estratégicos e negócios...

Os líderes da União Europeia não só perderam o rumo da Europa, traíram-na. Submissos, ajoelham-se perante os interesses bélicos e financeiros de Washington, esvaziando o continente não apenas geograficamente, mas também cultural e espiritualmente. Enquanto enterram o legado humanista europeu, transformam-nos em vassalos do projeto imperial americano, condenando a Europa a ser mero apêndice na nova ordem multipolar.

António da Cunha Duarte Justo

Texto completo em Pegadas do Tempo: https://antonio-justo.eu/?p=10250

sábado, 16 de agosto de 2025

A Democracia perde quando se reduz a Trincheiras

 

POLÍTICA NÃO É SÓ LUTA TEM TAMBÉM LUGAR PARA A POESIA DO ENCONTRO

 

.... Quando tudo se converte em arma, desaparece o espaço para a partilha. Na arena partidária, há quem se porte como cão de guarda feroz, sem perceber que até as hienas, depois de se fartarem, permitem que outros se alimentem da presa.

Octavio Paz lembrava que “o poema é um espaço de reconciliação entre opostos”. A poesia pode ser ponte. A vida também. A política, pelo contrário, insiste em dividir para poder dominar: “bem” contra “mal”, reduzindo a multiplicidade dos factores apenas a falso-errado...

Até o voto sofre com essa lógica belicista. O slogan “o voto é a arma do cidadão” reduz a participação democrática a um gesto de guerra. Mas o eleitor não é mercenário. Como dizia Rui Barbosa, “a pior ditadura é a do Poder Judiciário. Contra ela, não há a quem recorrer”. Mutatis mutandis, o mesmo vale para uma política reduzida a trincheiras: nela, não há escapatória possível; deste mal sofre principalmente quem aspira ao poder pelo poder.

O voto não é bala. É ferramenta de construção coletiva. Alexis de Tocqueville já advertia: “a saúde de uma democracia depende da qualidade das funções privadas” ...

António da Cunha Duarte Justo

Texto completo em Pegadas do Tempo: https://antonio-justo.eu/?p=10248

sexta-feira, 15 de agosto de 2025

A SENHORA DA ASSUNÇÃO É SIMBOLO RELIGIOSO E EXISTENCIAL DA DIGNIDADE DA MULHER

... Maria, assunta aos céus, não é apenas uma figura passiva da graça, mas a realização plena do destino humano. A sua assunção é a antítese da queda original: se Eva, símbolo da humanidade decaída, trouxe a ruptura, Maria, a "nova Eva", traz a reconciliação e a vitória da graça...

Aqui, a piedade popular intui algo que a teologia aprofunda: o corpo humano e em particular o corpo feminino, tantas vezes reduzido a objeto ou humilhado pela história é templo do Espírito e sinal de transfiguração. A Assunção proclama que a matéria, longe de ser desprezada, está chamada à glória...

Ao rezar “intercede por nós, para que sejamos dignos da mesma glória”, a comunidade não contempla uma rainha distante, mas reconhece em Maria a irmã e mãe que percorreu o caminho da dor e agora resplandece como esperança...

Numa cultura que ainda discute o lugar da mulher, a Assunção ergue-se como contra-símbolo: a feminilidade não é fragilidade, mas lugar teológico da revelação de Deus. Em Maria, o divino e o humano unem-se de modo definitivo, e a sua glorificação é resposta divina a toda humilhação sofrida pelas mulheres ao longo da história. O seu corpo glorioso proclama: “Aqui está a vossa dignidade. Aqui está o que fostes criadas para ser”...

Esta mensagem, quer a nível simbólico quer místico, deveria ser integrada e respeitada por toda a humanidade, porque na sua singeleza carrega uma força subversiva. Na Assunção, o povo de Deus reconhece o próprio destino. Ao glorificar Maria, glorifica a humanidade chamada à plenitude...

Nossa Senhora da Assunção, mulher forte e gloriosa, é ao mesmo tempo ensinamento e apelo: em cada rosto feminino resplandece algo da mulher simples e divina que, como nova Eva, nos abriu o caminho da vida verdadeira no novo Adão, Cristo.

António da Cunha Duarte Justo

Teólogo e Pedagogo

Texto completo em Pegadas do Tempo: https://antonio-justo.eu/?p=10238

PREÂMBULO DA CONSTITUIÇÃO PORTUGUESA MANTEM O SOCIALISMO COMO META

 

A Prática política e o Artigo 288 da CRP salvaguardam a "Democracia pluralista “

 

O preâmbulo da CRP reflete o contexto revolucionário de 1975/76, marcado pela Guerra Fria e pela influência de forças políticas socialistas e comunistas no processo pós-25 de Abril.

No entanto, Portugal e o mundo mudaram radicalmente desde então com a queda do Muro de Berlim (1989), o fim da URSS (1991) e a integração de Portugal na UE (1986) alteraram-se as prioridades políticas e económicas do país...

É verdade que o Preâmbulo não tem força normativa, porém, juridicamente, tem um valor declarativo e interpretativo, mas não é diretamente aplicável como uma norma constitucional vinculativa.

No preâmbulo em vez de “socialismo” deveria estar “justiça social” o que se tornaria mais compatível com as democracias sociais europeias...

O artigo 2.º da CRP (que define os princípios fundamentais) foi alterado para remover a menção ao socialismo, refletindo assim um consenso mais amplo.

É verdade que a CRP é um documento plural e não dogmático, mas a referência no prólogo parece justificar um certo messianismo socialista que se observa em muitos dos seus protagonistas propensos a defender o socialismo histórico em debates ideológicos presos ainda no século XX...

Embora as revisões constitucionais e as políticas públicas tenham mostrado que o objetivo real é um Estado Social Democrata e não um sistema de planificação centralizada, a mudança do termo socialismo como meta seria mais adequado e menos ideológico se em vez de socialismo estivesse justiça social, como seria dado em documento tão importante...

O artigo 288.º da CRP, que proíbe revisões que contrariem a "democracia pluralista “já foi um passo decisivo que protege os valores fundamentais fugindo à necessidade de fixação em ideologias específicas.

António da Cunha Duarte Justo

Artigo completo em Pegadas do Tempo: https://antonio-justo.eu/?p=10235

 

quarta-feira, 13 de agosto de 2025

A Transformação do Mundo começa na Revolução silenciosa da Consciência

 

A CONFISSÃO COMO INSTRUMENTO DE INDIVIDUALIZAÇÃO NA CULTURA EUROPEIA

 

Neste artigo, procurarei analisar como a Igreja, ao confrontar-se com as sociedades germânicas baseadas em lealdades coletivas, instrumentalizou a confissão individual como meio de responsabilização pessoal, contribuindo decisivamente para a formação de uma consciência autónoma na Europa e para a autonomia das consciências individuais, criando assim a base para todas as aspirações emancipatórias...

O processo de individualização da consciência humana, isto é, a emergência do eu autónomo em relação ao nós coletivo (à comunidade), constitui uma das transformações mais profundas e decisivas na história da mentalidade europeia e na formatação da sua jurisprudência, antropologia e sociologia. Esse desenvolvimento foi obra sobretudo da teologia e da filosofia seguida da política, sendo a Igreja Católica o principal agente na promoção da interioridade e da responsabilidade moral individual, que pouco a pouco conduz à individualidade de consciência.

Um dos mecanismos mais revolucionários e actuantes nesse processo foi a evolução do sacramento da Penitência, que passou de um acto litúrgico comunitário feito no início da missa, para uma confissão auricular privada...

A lealdade ao chefe e aos costumes ancestrais era o fundamento ético, não deixando espaço para uma noção de responsabilidade pessoal nem de pecado como ofenso pessoal a uma ordem que superasse de maneira transcendente a ordem dos costumes ou da chefia. A honra e a vergonha eram reguladas externamente, pela comunidade, e não por um exame de consciência interno...

A Igreja, portanto, enfrentou o desafio de incutir uma moral baseada na responsabilidade individual em culturas que não concebiam o indivíduo fora do grupo...

O Penitencial de São Columbano (séc. VI) estabeleceu uma abordagem personalizada do pecado, no qual o penitente, em diálogo íntimo com o sacerdote, se confrontava com as suas faltas de maneira individualizada perante Deus...

A alma tornava-se no local de encontro com o divino, onde a consciência individual se formava em paralelo com a consciência social...

O historiador Michel Foucault constatou em “A História da Sexualidade”, que a confissão cristã foi uma das primeiras tecnologias do eu a exigir que o indivíduo verbalizasse os seus pensamentos mais íntimos, criando uma subjetividade interiorizada (1).

O surgir da Ipseidade (mesmidade do eu): O Eu como Essência diante do Divino...

Essa dinâmica teve três consequências fundamentais decisivas: alcança a soberania da consciência individual. O indivíduo passou a ser julgado não apenas pelas suas ações externas, mas também pelas suas intenções internas. Dá-se também a relativização das instituições humanas pois se a alma respondia diretamente a Deus, então nenhuma autoridade terrena, nem mesmo o grupo tribal, podia reivindicar soberania absoluta sobre ela. Na sequência acentua-se a liberdade pessoal porque o indivíduo, ao reconhecer-se como sujeito moral autónomo, ganhou as bases para um processo emancipatório que se expressou de maneira relevante no protestantismo e culminaria, séculos depois, no Iluminismo e na noção de direitos humanos...

A prática da confissão individual foi, assim, um dos grandes fatores de individualização na Europa medieval, tornando-se como o ventre progenitor do eu que deixa de ser mera sombra da comunidade...

A confissão, nesse sentido, não foi apenas um sacramento religioso, mas um ato revolucionário que ajudou a forjar o eu ocidental (a consciência individual e cultural-social) ...

Formar consciências livres e soberanas era a sua meta. Por isso, mais do que confiar apenas na razão que disseca e argumenta, acolheu a intuição, esse olhar interior que não se perde em utopias de salvação universal, mas se ancora na certeza de que Deus habita no mais íntimo de cada ser humano, como uma gene divina e a salvação individual e universal começa por aí. Só Ele conhece o nosso ser até ao fundo, e o verdadeiro saber é a aventura de descobrir-se a si próprio. A transformação social de qualidade, não brota de decretos ou sistemas, mas da lenta e silenciosa evolução da consciência individual....

António da Cunha Duarte Justo

Teólogo e Pedagogo

Texto completo e notas em Pegadas do Tempo: https://antonio-justo.eu/?p=10230

segunda-feira, 11 de agosto de 2025

A Confissão como Instrumento de Individualização humana

 

O APÓSTOLO DOS GERMÂNICOS E O CARVALHO QUE DEU LUGAR À IGREJA


Diante desta poderosa estátua em Fritzlar, senti o peso da história: São Bonifácio (672–754), o "Apóstolo dos Germânicos", não só derrubou o carvalho sagrado de Donar (Thor), que os germánicos adoravam. Com a sua madeira, Bonifácio construiu uma capela, simbolizando a afirmação do Cristianismo sobre o paganismo. A estátua aqui retrata esse momento: ele segura um machado, sobre o tronco do carvalho e ao lado, uma árvore estilizada sustenta uma igreja, como  metáfora de como a fé se enraizou na região.

A sua acção também enfrentou a resistência feroz de povos que viviam sob a lei coletiva dos chefes tribais.

A sua morte foi trágica, foi martirizado por guerreiros frísios em 754, mas o seu sangue, como diz a tradição, tornou-se "semente de cristãos". A capela construída com a madeira do carvalho (onde hoje está a Catedral de Fritzlar) simboliza essa vitória: a fé que brotou onde a força pagã se dobrou.

Mas a conversão não foi só sobre destruir símbolos. Os germânicos, acostumados a obedecer aos líderes, resistiam à ideia de uma fé pessoal. A Igreja, empenhada no desenvolvimento da individualização humana, utilizou, então, a confissão auricular, que se resume a um acto íntimo entre o crente e Deus, para cultivar algo revolucionário: a individualidade da consciência. Era um passo além da lealdade tribal; era a alma diante do divino e que se colocava soberana acima de qualquer instituição humana.

Esta estátua captura tudo: o machado na mão, o tronco do carvalho vencido, e a árvore que sustenta a Igreja. Metal e pedra contando uma história de coragem, sacrifício e transformação.

Aqui, onde Bonifácio plantou a cruz, nasceu uma nova Europa.

Por um lado, Carlos Magno a nível cultural e político e por outro Bonifácio com as ordens religiosas foram os grandes impulsionadores e criadores da Europa.

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo: https://antonio-justo.eu/?p=10227

sexta-feira, 8 de agosto de 2025

O Lugar onde a Alma respira e repousa

 

QUINTA OUTEIRO DA LUZ NA BRANCA - AVEIRO

 

Quero guardar na memória a paisagem vista das alturas da Branca: o crepúsculo dourado, o cintilar das estrelas e o bailado suave das luzes na noite.

Das varandas da Quinta Outeiro da Luz (1), o olhar perde-se num horizonte marítimo que se estende de Espinho até para além de Aveiro, uma vastidão de mar e céu que toca o interior da pessoa com a delicadeza de um sussurro divino.

Cada pôr-do-sol é um versículo do livro da Criação: uma revelação única, irrepetível, como se o cosmos se abrisse em cor e silêncio para nos dizer algo que nenhuma linguagem humana ousa traduzir. Aqui, como em lugares especiais de Portugal, a paisagem revela-se música no coração.

Ali, ao entardecer, após um dia de lides cumpridas, a contemplação não é fuga, mas mergulho.

Não é o mundo que se abandona, mas sim o mundo que se revela na sua nudez plena, no seu erotismo sagrado, um apelo a olharmos para além de nós mesmos.

À noite, sob o lençol das estrelas, o peito recolhe o universo. Os astros cintilam como seios femininos a roçar a alma, contando histórias de vidas que arderam em pensamento e paixão, numa mesma voz unida de filósofos, santos, trabalhadores, buscadores do eros e peregrinos do Espírito.

Cada estrela é uma memória. Cada brisa é um sopro de quem já passou.

E no repouso e silêncio, tudo vive, mais intensamente que no alarido do dia.

A natureza, aqui, não é cenário, é templo da alma e do corpo.

O mar, o vento, o crepúsculo e as constelações convergem para dentro do ser, insuflando-o como pulmão cósmico.

Há uma espiritualidade que nasce do contacto com o real, não como ideia, mas como carne vibrante.

O Eros, aqui, não é apenas desejo, é ligação, pertença, escuta.

É no silêncio contemplativo que o ser reencontra a sua morada.

Não há doutrina mais profunda do que esta: estar diante do mundo com olhos nus, peito aberto e alma porosa.

A vida, enfim, respira-se, enfiando-se por nós dentro.

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo: https://antonio-justo.eu/?p=10220

(1) https://quinta-vacations.com/pt/home-portugues/

quinta-feira, 7 de agosto de 2025

O PÊNDULO E A PRAÇA

 

Parábola iniciática

 

Havia, na velha cidade de Bruxelas, um grande relógio no alto da torre da praça. O seu pêndulo, pesado e dourado, oscilava com precisão, marcando as horas que os poderosos decretavam. O Relojoeiro, homem de mãos finas e discurso polido, ajustava os seus mecanismos com ar solene, afirmando que só ele conhecia o ritmo certo do tempo.

Mas o povo, em baixo, sentia nas costas a sombra e o peso daqueles ponteiros. Alguns murmuravam que o relógio atrasava, outros que adiantava e os mais ousados diziam que marcava apenas a hora que convinha ao Relojoeiro.

Um dia, um vento forte soprou das ruas estreitas, trazendo consigo vozes desconhecidas. Eram os Andarilhos, homens e mulheres de passos inquietos, que não se curvavam ao tique-taque da torre. Gritavam que o relógio estava quebrado, que o seu ritmo não era o de todos, mas apenas o dos que o controlavam.

O Relojoeiro, perturbado, chamou os Guardiões do Mecanismo. "Estes ventos são perigosos," advertiu. "Se deixarmos que soprem livremente, o pêndulo perderá o seu curso, e o caos instalar-se-á!" E assim, começaram a amarrar cordas ao pêndulo, a vedar janelas, a calar bocas, tudo em nome da ordem e da democracia.

Mas o vento não se deu por vencido. Soprava mais forte nas frestas, levando consigo o pó das promessas esquecidas. E o povo, antes silencioso, começou a sentir que seu rosto começava a ser tocado por aquela brisa.

Ninguém sabia, ainda, se o vento traria tempestade ou renovação. Mas uma coisa era certa: Nenhum relógio governa o vento.

 

No Palco da Democracia 

Na praça pública, onde o sol se escondia atrás de névoas de retórica, erguia-se um palco de sombras e gritos. De um lado, os Senhores do Arco do Poder, trajando palavras polidas como fatos de alfaiate, acenando ao povo com promessas tão leves como o papel em que eram escritas. Do outro, os Pretendentes ao Poder, rostos inflamados de indignação, brandindo frases afiadas como foices, prontos a ceifar o trigo do campo alheio. E no meio, a multidão, um corpo cansado, espremido entre a bigorna do controlo e o martelo da revolta.

O populismo de cima descia em cascata, um rio de verniz institucional, enquanto o de baixo jorrava das bocas dos descontentes, ácido e espumante. Os primeiros falavam em ordem, os segundos em justiça, ambos, porém, pareciam concordar em uma coisa: o povo era mero espectador de seu próprio drama.

 

A Máscara e o Espelho

A esquerda outrora insurgente, agora entronizada, fitava-se no espelho da história e não reconhecia o próprio rosto. Onde antes via rebeldia, agora via apenas gestão. Onde antes havia fogo, agora havia protocolo. E quando os ventos sopravam contra ela, reagia não com argumentos, mas com os usados espantalhos, fascismo, retrocesso, ameaça à democracia, palavras gastas como moedas falsas.

"Como ousam criticar-nos?", bradavam, confundindo discordância com traição. O povo, que outrora lhes dera voz, agora era tratado como criança caprichosa, a quem se devia calar com paternalismo ou ameaçar com o dedo.

Enquanto isso, a direita conservadora, de gravata bem apertada, murmurava sobre tradição e estabilidade, mas seus olhos cobiçavam o mesmo poder que condenavam nos outros. E nos extremos, os profetas apocalípticos, de esquerda e direita, semeavam ventos que colheriam tempestades alheias.

 

O Teatro das Sombras

Os meios de comunicação, fiéis cães de guarda do status quo, ladravam em uníssono contra os bárbaros das redes sociais, esses novos gladiadores que ousavam desafiar o circo estabelecido. Cada manchete era um golpe, cada editorial um veredicto. "Populismo!", gritavam, como se a palavra fosse um feitiço capaz de exorcizar o descontentamento.

Mas o povo já não engolia as narrativas como outrora. Nas entrelinhas das notícias, percebiam o cheiro do medo, o medo dos que temiam perder o monopólio da indignação.

 

O Pêndulo democrático oscila

A democracia, esse pêndulo eterno, balançava entre o medo do novo e o cansaço do velho. Umas vezes para a esquerda, outras vezes para a direita, mas nunca parava no centro, pois o centro era uma ilusão, um lugar onde ninguém vivia, apenas fingia governar.

Os poderosos, assustados com o movimento, tentavam amarrar o pêndulo com leis e decretos, apertando o cerco sobre a dissidência. "Em defesa da democracia!", diziam. "Pela ordem!" Mas o povo, cada vez mais encurralado, percebia que o discurso era só pelo poder. Sempre pelo poder.

 

A Última Metáfora

No fim, restava apenas uma alegoria: a da casa comum. A esquerda, que se julgara arquiteta exclusiva da moradia, agora via surgir inquilinos indesejados, gente que não aceitava os seus planos, que queria reformar as paredes, mudar os móveis. Mas, a esquerda, em vez de debater, trancava as portas e gritava "incêndio!" A sua casa era uma prisão.

A verdade é que o fogo verdadeiro não estava nos críticos nem nos discursos, ele estava na lenha seca acumulada de décadas de promessas queimadas.

E assim, entre o populismo de cima e o de baixo, entre os que mandavam e os que aspiravam mandar, o povo seguia, sem réstia de sol, mas também sem deixar de olhar para o horizonte.

Porque o pêndulo, cedo ou tarde, sempre volta. E quando voltar, quem estará lá para o segurar?

António da Cunha Duarte Justo

©Pegadas do Tempo: https://antonio-justo.eu/?p=10216

segunda-feira, 4 de agosto de 2025

O PERFECCIONISMO CRIADOR DE ANGÚSTIA E INSATISFAÇÃO

 

Um Exame de Consciência para Elites-Governantes e Povo

 

A sociedade ocidental, doente do progresso, trocou a alma pela máquina, a virtude pelo algoritmo, e a transcendência pelo like. O resultado à vista é uma epidemia de vazios e cada vez mais doenças na sociedade ocidental de maneira a poder-se falar de um sistema que adoece o corpo e a mente dos cidadãos. 

A Morte da Perfeição Virtuosa e o Nascimento do Perfeccionismo Funcional 

A tradição clássica e cristã entendia a perfeição como uma harmonia entre corpo e alma, uma busca ética que elevava o indivíduo e a comunidade. O ser humano era visto como um microcosmo, a ponte entre o finito e o infinito, não como peça substituível num sistema mecanicista e tecnocrático.

Hoje, o perfeccionismo não é virtude, é exigência de funcionalidade. O psicólogo Thomas Curran revela que as tendências perfeccionistas aumentaram 60% desde 1990, não por aspiração interior, mas por pressão social. A sociedade não quer seres humanos completos, quer operários optimizados.

Abandonamos os sábios para fabricar técnicos. Renunciamos à felicidade em troca do gozo, o breve prazer do atrito entre engrenagens.

A Doença da Alma numa Sociedade Superficial

A Alemanha, símbolo da eficiência europeia, enfrenta uma crise de saúde mental: os custos com terapia psicológica disparam, enquanto outros tratamentos médicos são negligenciados. O Ocidente trata sintomas, não causas, porque não ousa questionar o estilo de vida que os produz.

Factos brutais: 1 em cada 4 europeus sofre de perturbações mentais (OMS) e a depressão será a principal causa de incapacidade até 2030.

Os jovens são os mais afetados: 40% da Geração Z relata ansiedade crónica como constata a American Psychological Association.

A espiritualidade e a religião, outrora pilares da resiliência psicológica, são ridicularizadas como "ópio do povo". Mas o que oferecemos em troca? Redes sociais que vendem conexão falsa, likes que substituem amor próprio, e uma economia que consome almas.

A Ditadura do Ego Auto-Optimizado

O neoliberalismo e o socialismo materialista uniram-se para esvaziar o transcendente. Como resultado surgiu uma cultura do egoísmo consagrado: tínhamos antes a devoção a valores superiores (Deus, virtude, comunidade); temos agora a auto-obsessão de cada um se torna na melhor versão de si mesmo, ao serviço do sistema.

Mas o eu sozinho torna-se numa prisão. O ser humano não é uma mónada autossuficiente; ele precisa de raízes, sentido, e algo maior que si. Sem isso, a ansiedade e a depressão são inevitáveis e mais ainda quando o próprio Estado perde e desmotiva sentido de missão.

A felicidade vem de dentro, mas vendem-na apregoando que está nos bens, nos likes, no sucesso vazio. O gozo é passageiro; a angústia, crónica. Trata-se de procurar gozo e felicidade sem que uma exclua a outra.

A Elite que nos desumaniza 

O saber e o poder concentram-se nas mãos de poucos: bancos, tecnocratas, gigantes digitais. Esta elite não quer cidadãos, quer consumidores obedientes.

A religião era um freio ético ao poder. Agora o poder encontra-se sem quem o controle e o mercado é quem mais ordena e dita a moral.

A alta finança encontra-se em luta contra a baixa finança e contra as empresas locais que sistematicamente destroem. As cúpulas ideológicas e económicas querem ditar sozinhas a vontade das pessoas e o futuro dos povos. Disto não se fala porque são os factores que se encontram por trás dos diferentes regimes como a história nos tem ensinado!...

Temos assim uma sociedade sem misericórdia, onde quem falha é descartado. Os fracos não são ajudados porque são ineficientes.

Reencantar a Vida: Um Apelo à Revolução Interior

Se queremos sobreviver como civilização, precisamos de: rejeitar o perfeccionismo tóxico (que exige perfeição, mas nega a profundidade); de restaurar o diálogo entre corpo e alma (a ciência sem espiritualidade é mutilada e mutila sem dor pelas populações); de desafiar a tirania do mercado sobre a consciência pois o humano não é um recurso.

A Europa está em falência cultural porque trocaram Deus pelo PIB, a alma por algoritmos, e a comunidade por solidão digital. Se não reagirmos, seremos escravos de um sistema que nos odeia.

Temos a alternativa: ou reencontramos o sagrado na vida, ou afundamo-nos na angústia de um mundo sem sentido.

Por amor também às próximas gerações temos que nos tornar críticos ao ouvir o clamor mudo dos povos, na consciência que a verdade dói, mas liberta. A alternativa é continuarmos doentes, sozinhos, e cada vez mais vazios.

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo: https://antonio-justo.eu/?p=10189