segunda-feira, 26 de maio de 2008

Poesia é compaixão – Para iniciados


As brocas da poesia, da religião, da filosofia e da ciência

A vida parece estar para os garridos
Do mar, da terra, do céu, do Homem e de Deus só se conhece a crusta. Por isso somos todos caminheiros do mistério.

Na nossa vida deparamos continuamente com limites dentro e fora de nós. Torna-se mais difícil o processo da introspecção do que o extrospectivo. A meta é a unidade em ressonância.

A nossa personalidade, tal como a realidade, comporta várias camadas estratificadas umas sobre as outras, havendo também fendas como se constata na geologia. Para uma vida sadia e equilibrada seria necessário que esses estratos se tornassem permeáveis, senão mesmo transparentes. (O grau de dificuldade constatado a nível pessoal (transparência dos estratos) é o mesmo a nível de sociedade (transparência das camadas e instituições)).

A esses estratos ou camadas podemos, de modo convencional, dar-lhes o nome de consciente, subconsciente e de inconsciente ou simplesmente corpo, alma e espírito. Todos nós já temos dificuldade em prestar a devida atenção ao estrato do corpo, tratando-o normalmente muito mal e não o escutando. Pior ainda no que respeita aos segmentos da alma e do espírito. Por isso não será de admirar que todos nos queixemos dos cangalheiros do corpo, da alma e do espírito. Ao fim e ao cabo todos vivem na e da abdicação!... E tudo por falta de brocas e de consciência! Isto porém não nos deve impedir de continuar a dançar nos ranchos da sociedade! Seria mais perigoso tornar-nos num povo de macambúzios quando a escola, a politica, a ciência, a religião e a economia só se interessam pela dança... O pior de tudo isto é que, à excepção de paraquedistas gaiteiros ou dos galadores (galos!) da vida, quase só se nota gente frustrada. Parece o teatro da morte na dança da vida ou a farsa da vida na dança da morte! Falta-nos a consciência libertadora, uma consciência de povo capaz de possibilitar a soberana dança da vida com a morte. Por isso na Quaresma do viver, a vida parece estar para os garridos.

Para trespassarmos as ditas camadas e as tornarmos permeáveis precisaríamos duma grande broca individual bem temperada que chegasse até ao âmago de cada pessoa, ao lugar da criatividade universal e necessitaríamos também duma broca social que conseguisse atingir a esfera do bem comum e a realização de cada cidadão. Na falta duma identidade dinâmica consciente de povo, ao problema das brocas acrescenta-se o destempero social alienador e decadente, em conexão com o ser individual inconsciente. Este continua a contentar-se com a dança, digo, com o ritmo de caixa da libertinagem ditada ao som do chicote do trabalho, escorregando já no suor das contribuições.

Se já desprezamos o primeiro estrato, o do corpo / do consciente, que não dizer dos outros! O estrato a que chamamos consciente é o palco das representações do inconsciente onde os actores são fantoches manuseados por este. Assim, se não estamos atentos vivemos a vida em segunda mão ao sermos determinados por programas, sentimentos e pensamentos de que não conhecemos a génese. O inconsciente e o colectivo tocam cada um a sua música e nós dançamos a ilusão, na “consciência”de que a música é nossa.

Compaixão um valor desvirtuado?
A tarefa de tornarmos os estratos do nosso ser permeáveis entre si é uma missão de toda a nossa vida. A poesia, a religião e a filosofia ocupam-se especialmente deste processo. Estas têm que se dar as mãos em colaboração com as outras disciplinas consciencializando-se que o objecto do seu interesse é um só: a felicidade do Homem e da sociedade na unidade de pensar, sentir e agir. O primeiro passo a dar terá de ser introspectivo para descobrirmos a nossa essência e da sociedade. Talvez não fosse mal seguirmos o exemplo do filósofo grego que em pleno dia de sol andava pelas ruas da cidade com um candeeiro na mão à procura do Homem. De facto somos como tal irreconhecíveis. Talvez o primeiro passo a fazer seja o da compaixão e não continuarmos a fazer como os gregos que na sua idiotia consideravam o filósofo maluco. Vai sendo tempo de termos compaixão de nós e dos outros! Ouve um outro maluco chamado Jesus que viveu ao vivo nas obras a compaixão.

O caminho da introspecção conduzir-nos-á ao lugar do divino em nós, onde se encontram todos os segredos da vida. “Não sabeis que sois templos do espírito?” Ao chegarmos lá tornar-nos-emos não só criativos mas também criadores. Lá se encontra a fonte donde a vida brota a jorros e lá nos encontramos na ressonância com todo o universo. A partir daí deixa de haver dentro e fora, centro e margem. Passa-se a sentir a ressonância do “tudo em todos”.

A fraqueza comum a todo o humano é como a neblina matinal cerrada que não deixa ver o horizonte nem o sentido. De mãos dadas, sem medo da nossa nudez, no nevoeiro da crise conseguiremos dar passos em direcção ao essencial. Importante é a caminhada dialogal.

A capacidade intuitiva de ver com os olhos do outro acontece através da experiência da vida e da interiorização. Quem não possuir a capacidade de introspecção facilmente veste a máscara de ajudante. Esta não permite o encontro com o outro porque este só é possível quando nos tivermos encontrado connosco mesmos, com o totalmente outro. Enquanto não entrarmos nesse processo reduzimos o nosso agir à dança das mascaras reduzindo-nos a marionetas, num diálogo de surdos de objecto para objecto. Para uma relação sujeito – sujeito pressupõe-se o estado de nudez, propriamente o deixar de ser para estar.

A dificuldade está no encontro pessoal, na capacidade de nos relacionarmos e de ouvir. Se sou capaz de entrar em mim, na minha pobreza e humanidade, então é-me mais fácil entrar em união com o próximo e sentir com ele e com ele caminha a partir do mesmo chão. Esta era a atitude de Jesus no contacto com as pessoas, por isso não feria ninguém. Não se escondia por detrás da máscara do ajudante, do padre, do professor, do curandeiro, do burro ou do esperto. Ele não tem medo da proximidade do outro. Por outro lado, no seu encontro com o próximo não punha de premeio a lei. Ele curava e fazia o bem mesmo contra a lei. “Ama e faze o que queres”. Quem respeita está capacitado para sentir com o outro sem o ferir ou exteriorizar. Madalena lava-lhe os pés sem que Ele se envergonhe dela. Ele sentia com ela, tinha a capacidade da empatia. O seu agir estava sempre em conformidade com a sua atitude interior do sentir.

O segredo do terapeuta está na sua misericórdia para com o próximo. Do reconhecimento da própria miséria surge a ligação de compaixão para com a miséria do outro, tal como se dá no caso do Samaritano. O sentimento vem do mais profundo da alma. Verdadeira compaixão não é superficial, nem sobranceira, ela é uma ternura infundada, algo original que faz parte de nós. Vale a pena descobri-la.

Simpatia e compaixão não partem duma posição privilegiada. Ela acontece ao mesmo nível do fraco, do carenciado. Nele contacto a minha própria fraqueza, a minha própria experiência. Na minha nudez experimento a nudez do mundo, a nudez de Deus e daí surge a vibração do todo, o agradecimento e a bênção num extravasar do amor nosso.

A experiência e a vivência da minha vulnerabilidade liberta-me do ego tornando-me capaz de compaixão. A entrega por misericórdia implica a capacidade de ser misericordioso para consigo mesmo. No modelo Jesus nos podemos rever: ”Meu Deus, meu Deus porque me abandonaste!”. Nos bons e nos maus, nos ricos e nos pobres e nos doentes que encontro na estrada lá vou eu também, sou eu que caminho, são eles que andam em mim!...

Jesus não quer passar à margem da dor, ele acompanha-nos até à morte. Ele come e bebe também com os mercenários e as prostitutas da vida. Nós somos Ele hoje.

Aquele que se entrega aos outros, ao partido, à Igreja sem se ter primeiro confrontado consigo mesmo, sem ter descido às profundidades do inferno corre o perigo de ser hipócrita, ou vive na superficialidade dum agir compensatório. O estar em situação pode ser também usado como processo de introspecção e de catálise do próprio ser na caminhada em que nos encontramos. Estar lá onde pessoas são discriminadas, lá onde a vida sofre. Quando multiplicadores, pessoas em posição falam de modo depreciativo sobre pessoas quer dizer que não podem saltar sobre as próprias sombras e vivem na alienação de si mesmos. Aquele que encara a própria doença da alma nos olhos torna-se capaz de assumir responsabilidade e de entrar no processo vital da vida que é sempre mudança. Muitos são os chamados mas poucos os escolhidos! O caminho da introspecção, a atenção, o carinho e o agradecimento são a melhor iniciação.

Ter compaixão é agir em sintonia, é a capacidade de sofrer juntamente com o outro, como a palavra etimologicamente ensina. Na compaixão Deus, o todo vibra, revela-se em mim.

Toda a comunicação a partir duma posição de poder é uma comunicação distorcida.

Agostinho dizia: “Presta atenção e faz o que queres”.

António Justo
"Pegadas do Tempo"
2007-03-05
António da Cunha Duarte Justo

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