segunda-feira, 26 de maio de 2008

Maria: a deusa secreta do Cristianismo!


O século XXI será um século mais feminino, iniciará a época da mística

O Vaticano II não trata o assunto de Maria como projecto específico relegando-o para o capítulo sobre a Igreja. Maria é apresentada como a exemplar seguidora do filho e como protótipo da Igreja.

Propriamente a Mariologia só apareceu a partir do século XVII. No século XII começa a aparecer a subjectivação de Maria alcançando esta o seu clímax no século XIX com a teologia dos privilégios. Atribui-se-lhe então o carácter singular eminente entre as criaturas. Recebe o atributo de mãe de Deus e é vista como tipus ecclesiae (em primeiro plano não está a graça mas a fé). A prioridade de Maria revela-se no que nela acontece e na sua disponibilidade (fiat).

O feminismo enfardado
Numa sociedade civil descaradamente masculina com alguns aleivos femininos seria importante ir buscar ao sótão da nossa tradição a espiritualidade mariana, possibilitadora de maior criatividade e abertura num mundo tão macho em que as próprias lutas feministas não passam geralmente duma luta de mulheres enfardadas. (Não está em questão o problema das fardas e dos arreios em si, o problema está no espírito que lhes deu forma e este espírito é só masculino!).

A Mariologia é o substrato duma espiritualidade feminina a retomar na tradição do “Evangelho do Coração”. Maria é mais que médium, tornando-se como que no protótipo de cada pessoa ao ser criadora, ao dar à luz. Ao mesmo tempo simboliza a comunidade, a ecclesia e é também a imagem da criação consumada. É modelo na entrega, na fé e na aceitação. Ela, como a primeira sacerdotisa da cristandade poderia fazer a ponte para a ordenação de mulheres como sacerdotisas. No coração do catolicismo manteve-se sempre vivo o sacerdócio mariano. Até 1903 a “sacerdotisa sem mácula” ainda aparecia vestida na pintura com os paramentos sacerdotais. Sintomaticamente a invocação de Maria como sacerdotisa foi interrompida pelo Santo Ofício, creio que em 1926, altura em que algumas Igrejas protestantes começavam a falar da admissão de mulheres como pastoras.

Maria emigrou do protestantismo mas está agora de volta através da arte e da devoção. Na tradição protestante dado a concentração se dar em torno de Jesus, Maria tem menos significado que na católica. Os dogmas sobre Maria não podem ser vistos apenas como afirmações sobre Cristo.

Muitas igrejas evangélicas trazem o nome de Maria. Ultimamente já dão mais importância à iconografia assistindo-se a uma mudança e aproximação na reflexão sobre Maria. A teologia feminista tem ajudado. A nível da devoção nota-se nos evangélicos cada vez mais abertura. Por outro lado o feminismo radical só quer a terra como mãe, ele quer, nalguns sectores, reconquistar Maria como a deusa das origens. Ele, que vê no monoteísmo o consolidador do patriarcado, procura fora da tradição bíblica os seus aliados além de se preocupar em purificar Maria da igreja, talvez porque veja na Igreja uma concorrência à maternidade e à feminidade. A sua veemência é um sinal e um aviso aos estabelecidos do religioso que muitas vezes não tomam em consideração as necessidades de outras formas de expressão. O grande contributo civilizacional até aqui dado pelas Igrejas para o desenvolvimento dos povos

Maria pode tornar-se num caminho de aproximação entre protestantes, católicos e o mundo. Ela é o protótipo do feminino. A nível de culto e de espiritualidade na relação dos sexos o catolicismo leva a dianteira aos protestantes. Teologicamente, em Maria cruzam-se as questões da graça, da justificação e da colaboração. Também no catolicismo há uma sola fides e uma sola gratia. Adorado é só Deus, Maria é venerada com inúmeros nomes. Nele continua reabilitada e viva a tradição politeísta.

O poder da emocionalidade e da feminidade que brotam especialmente de Fátima e de Lourdes estão muito presentes também no lado psicológico da fé que é irrenunciável. A saudade original da mãe, da salvação, da protecção e da identidade cultural não se podem desprezar. Há toda uma iconografia à volta de Maria que tem de ser aprofundada não só na espiritualidade e na mística como também na terapia psicológica. Maria é o protótipo da sabedoria e da comunidade, da sinagoga. Ela é uma figura tão complexa que inclui também uma religiosidade secular. O arquétipo da sagrada família com o presépio é também uma constante. Curioso é o facto da sagrada família propriamente não ser modelo atendendo ao carácter marginal de José. E Marcos reforça: “Aquele que faz a minha vontade é meu pai, minha mãe e meu irmão…”.

A arte é essencialmente feminina
A nossa sociedade mais máscula que nunca precisa de descobrir o outro pólo da realidade que é a feminidade. Aqui terão muita importância os artistas. Maria como factor emancipador pode concorrer para a correcção dum feminismo que inconscientemente segue os padrões másculos. A teologia mariana ainda tem muito a caminhar no sentido de dar um grande contributo na encardinação da feminidade em sistemas eclesiásticos e políticos que embora defendam a mulher não integraram a feminidade e a masculinidade como processos dialogais constitutivos do ser humano e da sociedade. A arte ao encontrar novas imagens dará novos impulsos para uma nova cognição. É natural que o diálogo da Igreja e dos artistas não é fácil até porque uns e outros se sentam mais ou menos conscientemente na fonte.

O pensar bipolar ou pior ainda dialéctico na sua essência concorrente desfigura a realidade. A polaridade concorrente, porque não convergente, adia ad aeternum o óbvio salto qualitativo da consciência humana. O nosso pensamento bipolar caduco em termos de homem/mulher, razão/alma, filosofia/arte, teologia/espiritualidade (devoção), política/religião, protestantismo/ortodoxia, intelectuais/povo e muitas outras dicotomias fruto da dialéctica e estabilizadores da má consciência constitui o principal impedimento ao desenvolvimento.

A igreja evangélica na Alemanha reconhecendo o seu carácter demasiadamente masculino tem-se tornado num espaço aberto à arte e consequentemente a Maria. Na igreja é dada aos artistas liberdade de expressão. Por outro lado a arte tem descoberto a Igreja como espaço da liberdade e não da apropriação. A religião e a arte precisam de formas contemporâneas sem se reduzirem a elas. Originariamente a religião era o lugar privilegiado da arte. Com o recrudescer do racionalismo a política apoderou-se em grande parte da arte para a tornar um ornamento seu.

Em Portugal as paróquias poderiam tornar-se conscientes desta problemática e transformar-se em espaços mais abertos aos artistas. Não chega a sensação de que o espírito feminino já tem lugar especial nas igrejas. Por vezes há o perigo de se compreender espírito feminino com sentimentalismo, o que se torna visível numa certa arte popular denominada por kitsch ou pseudo-arte. Seria de saudar a arte como parceira hermenêutica da igreja. A arte e a igreja são o lugar da subjectividade, ponto de encontro e de partida do ser. A religião e a arte são o lugar privilegiado da mística onde além do saber intelectual se cultiva o saber místico. Este pressupõe uma catarsis, uma ascética, um caminho da extrospecção para a introspecção como método. O saber intuitivo, místico, vem do coração. Já Pascal dizia que o coração tem razões que a razão não conhece. O saber místico é integral e provem do saber, sentir e agir, como nos testemunha a mística conventual ao longo da história. A palavra atraiçoa e falsifica até o saber místico. Ele é uma atitude, um estado de vida. É participação no ser divino através do coração.

Maria, como todos os símbolos religiosos tem sempre sentido duplo. O movimento das mulheres precisa de marcas pluridimensionais de referência. A emocionalidade vinda do coração torna-se um fenómeno cada vez mais raro. Os evangélicos exorcizaram os restos da feminidade através de movimentos iconoclastas. A igreja católica no seu processo de aculturação assumiu os lugares das deusas tornando-os residências de Maria. Como as deusas da fecundidade as mulheres férteis transmitem a vida. Maria produz a vida sem intervenção do homem, torna-se grávida por força do espírito. O novo, o que ainda não havia vem do Espírito Santo. Ela é misticamente o protótipo da mãe e Deus é simbolizado na virgem. Nela o homem pode encontrar a sua iniciação mística, o seu ser mãe também num processo de invaginação. A mãe virgem é a metáfora do recomeço.

Maria poderia tornar-se num “achado” tanto para a teologia como para a arte em geral. A bíblia trata de teologia e não de biologia. A salvação vem de baixo. No magnificat as vítimas são o sujeito do agir.
A religião precisa duma entrada mística mais significativa. O caminho místico é o da convergência. O melhor exemplo dele encontra-se na fórmula mística da Trindade.
António Justo
"Pegadas do Tempo"
2007-03-14
António da Cunha Duarte Justo

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