segunda-feira, 26 de maio de 2008

Modelos de interpretação da cruz / paixão


A sabedoria escolar é o princípio do saber
Com o andar dos tempos deu-se uma mudança na percepção da cruz e da paixão, ou melhor, vão-se dando diferentes acentuações conforme o espírito do tempo e a idoneidade de entendimento. Nas ciências em geral e na teologia em particular há vários modelos de aplicação da teoria ou dos dados. Essencial é não os petrificar no tempo nem no espaço. Antoine de Saint Exupéry dizia: “Progresso é o desenvolvimento do primitivo para o simples através do complicado”.

A cruz é o símbolo cristão por excelência, a chave do cristianismo, ela é também o símbolo do Homem. Quem não tiver contacto com a espiritualidade cristã ficará com a impressão de que na Igreja se dá a exaltação do sofrimento. Facilmente se tem abusado da cruz. A verdade é que o crucifixo além de ser uma provocação é um apelo a acabar com a violência.

A acentuação do aspecto individual e do sofrimento deu-se especialmente a partir das invasões bárbaras e em parte devido aos tormentos então sofridos. O Cristo dependurado na cruz é uma apresentação brutal mas real, tal como os cristãos sentiam nos tempos bárbaros e de adversidade. Jesus é o Homem e as suas circunstâncias.

A ideia e a imagem sobre a cruz e sobre a paixão são actualmente diferentes das dos primeiros cristãos. Todas as épocas e todo o Homem trazem em si o germe da salvação divina sendo este percebido de modo diverso. O problema está em activá-lo e presenciá-lo. Na retina do tempo há sempre uma janela para o mistério; este transcende o tempo e o espaço. Shakespeare: “Há mais coisas entre o céu e a terra do que a vossa sabedoria escolar deixa sonhar”.

O masoquismo não é cristão
Hoje para muitos cristãos a salvação dá-se através do sofrimento do calvário. Para a comunidade primitiva a acentuação não estava no sofrimento do crucificado mas sim na ressurreição, não só por ter ainda ter presente o Deuteronómio (21,22) que declarava maldito quem morresse no madeiro mas sobretudo pela experiência do ressuscitado.

De facto o fundamento do Cristianismo não está na cruz mas na fé em Jesus ressuscitado. Na espiritualidade porém é mais tida em conta a sua paixão, o que complica a abordagem dos mistérios cristãos a um certo espírito contemporâneo.

A morte na cruz teve como consequência a grande desilusão sofrida pelos discípulos perante tal acontecimento. Só depois da experiência da ressurreição e da experiência de que o ressuscitado vive através do seu espírito nos outros, é que os discípulos (primeiro as mulheres e depois os homens) compreenderam que toda a vida de Jesus foi salvadora. A ressurreição levou-os a entender a paixão.

Também Saulo se transformou em Paulo através da experiência com o ressuscitado.

Outra diferença entre a compreensão da comunidade primitiva e o perceber hodierno está no facto deste entender que Jesus morre pelo indivíduo, por cada pessoa individualmente como que se o indivíduo fosse responsável pela morte de Jesus. Por seu lado a comunidade primitiva quando se refere à sua morte refere-a como sendo “por nós”, comunidade, povo, mundo.”Pelos nossos pecados”, por nós que participamos do mesmo destino. Ele assumiu a qualidade humana e o mundo até ao extremo morrendo abandonado na cruz. Ele não deixa ninguém de fora.

Jesus Cristo dá à luz o mundo
Jesus dá à luz o mundo para Deus tal como sua mãe Maria o deu à luz para o mundo.
Hoje acentua-se mais a cruz quando outrora se salientava Jesus Cristo na sua vida toda integral, não privilegiando a “Jesusologia” em relação à “Cristologia”.

A acentuação não está tanto no que devemos fazer por Deus mas no que Deus fez por nós. Não é tão determinante a expiação. Esta tem por base uma ideia dum Deus legalista cuja ofensa tinha de ser vingada, ou reparada. O NT é módico no que respeita ao relato da paixão. Aqui, nos últimos momentos de Jesus é sublinhada a sua relação para com Deus seu pai e para com as pessoas. Ele morre citando o salmo 22.

Como se vê há vários modos de abordagem do tema correspondendo estes a diferentes sensibilidades, épocas e estados de consciência. É importante a existência de diferentes modelos de interpretação o que poderá corresponder a diferentes necessidades de salvação e a diferentes estados de consciência. Não se trata de jogar uns modelos contra ou outros mas do alargamento de consciências. Importante é entrarmos na economia das imagens, no que elas escondem.

É importante a perspectiva da chamada de atenção da teóloga católica Anneliese Hecht ao dizer: “Jesus não anunciou a cruz como caminho de salvação mas sofreu sim a morte no momento em que a Boa Nova foi mal interpretada e recusada”.
As palavras do seguimento da cruz são post – pascoais, apelando para o empenho no seguimento do próprio caminho.

Na refeição da despedida em Lucas 14,36 Jesus prevê a sua morte. A sua vida está à disposição do Pai (Mc14,36). Assim na noite da entrega e da morte Cristo entrega-se por todos. O seu agir é incondicional entregando-se até mesmo ao que o entrega. A Ceia (eucaristia) é o testamento. Na partilha nos reconhecemos e participamos da realidade trinitária, no ser de tudo em todos.

Jesus entrega-se no pão partido “por vós”. Mais que o pão é o pão partido a base simbólica e sacramental. Teologicamente a fracção do pão é importantíssima e implica uma teologia com grandes perspectivas de interpretação. “Isto é o meu corpo”. A palavra usada é soma = corpo; soma, em grego, quer dizer a pessoa completa e não apenas o corpo. A palavra “isto”, em grego do género neutro, quer dizer o partir do pão e não o pão, porque em grego a palavra pão é masculina exigindo consequentemente um outro artigo. A teóloga supracitada conclui:”o partir do pão simboliza portanto a sua vida, que será quebrada na morte”. Através do comer do pão participa-se na sua entrega e morte.

Nas palavras, “Este é o meu cálice da nova aliança no meu sangue”, é realizada a nova aliança na comunidade de vida. No sangue de Jesus realiza-se a nova aliança. O sangue no AT era o símbolo de Deus aspergido sobre o povo. A aliança é também a união do homem com Deus na sua essência de ser para os outros. O corpo e o sangue são sinais da entrega. Na refeição está presente a escatologia do último dia. Na última Seia Jesus pré-interpreta o assassínio como uma entrega livre da sua vida. Ele aceita de antemão a acção daqueles que o matam. Na ceia antecipa e realiza a consumação da sua vida como entrega livre antecipada integrando nela mesma os próprios assassinos.

A igreja primitiva interpreta a morte como um escândalo – porque todos fogem à cruz – compreendendo a sua morte como a consumação da sua entrega.

Tal como os discípulos que só compreenderam a vida de Jesus depois da sua experiência com o ressuscitado também nós só a poderemos compreender a partir da experiência da ressurreição e não a partir da cruz. Esta experiência não se reduz a um acto do conhecimento, transcende-o. Por isso não é dada a todos. É um acto de amor místico não só paternal mas também maternal… nele se integra o ciclo trinitário, do pai-filho-espírito, do pai-matéria-amor, do eu-tu-nós, três num só..

Deus torna-se solidário com as vítimas da violência, do poder (Salmo 22, Is 52,13 e 53,12; Sab 2,10-20 e 5,1-12), com os cordeiros inocentes. Ele vive longe das elites religiosas e políticas mas próximo dos gastadores, dos adúlteros e dos degenerados. Jesus participa do destino dos profetas que não foram aceites (Lc 11,47-52 e 13,34). Certamente que também hoje não receberia prémios Nobel nem condecorações, embora também haja lugar para estes. No seu último acto de entrega incondicional no madeiro e com um grito – o grito de toda a natureza – Jesus dá à luz a matéria para Deus. Com ele e nele a matéria toda se entrega em Deus fazendo parte integrante da realidade e da relação trinitária.

A carta aos Hebreus 9, 11-14 anuncia o fim da teologia da vítima. A morte de Jesus não é a causa da nossa salvação no sentido duma necessidade de reconciliação com Deus ofendido. A sua morte é uma parte de toda a sua vida, no seu ser e estar para os outros.

Em Jesus revela-se o amor libertador de Deus. Deus não precisa de expiação, ele amou sempre o mundo. Deus está em Cristo e reconcilia o mundo consigo mesmo no paráclito. O mundo está em Jesus como Cristo está em Deus e nós agimos em Deus o agir de Deus em nós. Deste modo participamos na Realidade da Trindade.

A morte de Jesus é continuada na entrega e serviço ao outro. Deus aceita o homem incondicionalmente, é misericordioso. Deus não precisa de reparação, o ser humano é que precisa de reconciliação. Ao termos surgido do amor do pai sentimo-nos como que a sua sombra vivendo da saudade que é o espírito do todo, de Cristo em nós. Assim os vários modelos podem revelar-se com matizes da mesma sombra em relação à Luz. Nós encontramo-nos na continuidade da morte e ressurreição antecipada pelo mestre de Israel e a ser realizada por nós

Neste espírito torna-se importante integrar as várias tradições e os vários modelos, no espírito trinitário integral.

António Justo
“Pegadas do Tempo”
2007-03-18
António da Cunha Duarte Justo

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