António Justo
A
Alemanha, "locomotiva da Europa", é acusada pelos defensores do
neoliberalismo, de querer controlar a moeda única e esquece que os mercados
financeiros se orientam pela Alemanha ou quando muito pelo eixo Franco-alemão.
A discussão pública, em torno do
contencioso entre o Tribunal Constitucional Alemão (TCA), o Tribunal Europeu
(TJE) e o Banco Central Europeu (BCE), tem por base dois modelos de Europa: o
centralismo de Bruxelas de cunho francês e o regionalismo de cunho alemão.
A discussão pública, a favor ou contra, corresponde por um lado aos
interesses de centralistas e por outro dos regionalistas. A controvérsia ameaça
perder-se em questões de interesses pontuais, ao não contemplar o facto dos
grandes desequilíbrios existentes nos países da EU a nível de orçamentos
estatais e correspondente produtividade, económica, factores estes que levam a
adiar a concretização da união comercial, aduaneira e monetária. Seria trágico
se a deficitária política económica europeia justificasse um centralismo
jurídico deficitário, ambos impostos por tecnocratas mais internacionalistas
que europeus.
A afirmação de que o TCA, com o acórdão
de 5 de maio 2020, “quer recuperar o controlo sobre a moeda única” é unilateral
e não reconhece que a importância do grande empreendimento europeu e a
relevância das nações terão de ser complementadas para que a EU não se torne
num mero instrumento da ONU ao serviço de um globalismo demolidor de biótopos
culturais e regionais com uma democracia reduzida a burocracia nas mãos de
poucos, à maneira chinesa.
Devido à
negligência da política nacional e europeia, o TCA sente-se obrigado a intervir
na defesa do direito e do cidadão, não podendo, na consequência, aceitar que
seja o BCE a determinar a política na Europa; os políticos têm delegado as suas competências no BCE que assume também
a política fiscal contribuindo para a expropriação paulatina da classe média
europeia. (Também os deputados alemães não têm respeitado as disposições
constitucionais nacionais deixando-se levar por uma classe política de magnates
distantes das regiões e a quem falta o substrato de um direito comunitário
impermeável.
O TJCE,
que deveria calar-se e esperar pela cobertura política, pronuncia-se também
contra a decisão constitucional alemã, embora consciente de que a sua pretensa
supremacia se tem dado devido ao desrespeito da supremacia dos parlamentos
nacionais, que são os órgãos competentes que limitam o poder do TJCE. De facto, a pretendida supremacia do TJCE tem
sido mais o resultado de cedências políticas sem base constitucional europeia. Não é legítimo nem transparente que pela
porta traseira da política se concedam competências a um TJCE e a um BCE com
insuficiência de justificação jurídica, como legitimamente adverte o TCA. Seria
indemocrático criar-se um construto europeu não só à margem dos povos como também
à margem das Constituições nacionais para assim o melhor colocar ao serviço do neoliberalismo
globalista.
O
acórdão do tribunal é ao mesmo tempo uma admoestação a dois destinatários: ao
BCE e aos governantes que têm delegado indevidamente competências no BCE que
por seu lado tem atuado fora das suas habilitações, no que toca ao sentido e
objectivo dos acordos. De facto, têm
sido, frequentemente, atribuídos poderes e competências à comunidade, que não
estavam originalmente previstos nas próprias leis, como aconteceu em 2017, com
o programa de compra de títulos de dívida dos Estados membros.
O TCA quer
clareza e censura a transferência intransparente de competências embora isso
esteja previsto de maneira indefinida no acordo de Lisboa onde os
estados-membros continuam a ser "senhores dos tratados". Por isso o TCA quer interromper a
transferência de competências do Tribunal europeu (TJCE) para a instituição da
EU, querendo acabar com uma certa promiscuidade entre justiça, economia e poder
político que cria mal-estar na população europeia, e justifica indiretamente o temido populismo.
O que está aqui em jogo não são primeiramente
os interesses dos alemães, mas sim os interesses de uma classe média europeia a
ser desonestamente expropriada e de Estados a serem cinicamente desmontados ao
serviço de um globalismo económico liberal e de ideologia socialista
materialista. Um tal acórdão surge num país forte em que cidadãos conscientes ainda
possuem força suficiente para fizeram pressão sobre a política, apelando à
intervenção do TCA para fazer valer também os direitos da base. Conseguiram que
este esclarecesse que a política monetária não deveria substituir a política económica
porque isto está em contradição com a Constituição alemã. Os governos têm aprovado uma política
sem terem examinado se o BCE com a compra de obrigações se encontra legitimado a
fazê-lo em termos constitucionais.
Resumindo: governos e deputados têm
agido à margem da Constituição e não se preocuparam com os interesses do país e
de grande parte dos cidadãos que sofrem com uma política de taxas de juro
fatal.
Também o
TJUE deve manter-se dentro das suas competências que são os assuntos da EU. O plano político não se pode sobrepor ao
plano jurídico que tem de respeitar a tradição europeia do direito das
constituições nacionais.
Também
se alega que o Tratado de Lisboa carece de ser interpretado e não garante
fundamento jurídico suficiente que estabeleça o primado europeu político. O TCA está a defender os interesses legais
do cidadão e como tal tem o dever de interpretar as acções do BCE para
acautelar a democracia e impedir uma certa plutocracia que afirma o globalismo
liberal à custa dos interesses do
cidadão e do regionalismo.
A
necessidade de se afirmar um plano político europeu (também através do TJCE)
revela-se questionável em termos jurídicos tal como o BCE em termos de política
monetária. De dois factores (-) não se pode aqui chegar a um factor (+)!
O
possível factor (-) da intervenção do acórdão do TCA contra o centralismo
(integração/desintegração) revela-se numa advertência séria e legítima aos
actos dos políticos e à desapropriação da população produtiva nos diversos Estados
membros em favor de um primado europeu político, conseguido à margem e à custa
do direito das bases.
Também Merkel, por muito europeia e
competente que seja, não pode passar por cima dos interesses dos seus cidadãos
nem seguir um modelo centralista quando o modelo federal alemão se revela mais
democrático e eficiente em questões da administração política.
A
questão mais problemática a apontar será naturalmente o timing
do acórdão, mas este tinha de acontecer num momento em que estão em jogo
bilhões de euros e que não podem continuar a ser concedidos sem mais legitimacao democrática.
O
problema não está na Alemanha, mas sim no facto da Europa ser demasiado pequena
para a Alemanha e no atropelamento que acontece nas economias marginais. O que muito
conta são as economias e os mercados financeiros e para que os países europeus
se tornem em situação equiparável à Alemanha teriam de se deixar regular por uma
política económica e financeira semelhante à sua. Enquanto isso não acontecer
haverá sempre uma relação insatisfatória entre parceiros empertigados e
parceiros complexados.
O contencioso revela-se como muito
oportuno porque não se tem considerado suficientemente a
ambivalência existente entre as leis determinantes do desenvolvimento económico
e as leis humanas e democráticas por que nos queremos pautar no desenvolvimento
da sociedade em geral.
No
contencioso entre o TCA e o TJE há razões jurídicas e económicas legítimas,
dado, no fim de contas, se ter de perguntar quem é que suporta a fatura provocada pela politica do BCE de
comprar Obrigações dos Tesouros nacionais e que suporte europeu tem
a política do BCE (para se transformar num tapa buracos-paga-dívidas- das
diferentes economias, muito embora acolitado pelo TJE). Uma outra pergunta a
fazer-se seria, porque seguem os europeus uma matriz económica neoliberal que
prejudica as economias menos fortes e as coloca em situação de pedintes e de consumidores
em vez de se apostar numa nova organização económica. Uma outra acusação que
anda no ar acusa que o TJE "ignora sistematicamente princípios
fundamentais da interpretação do direito ocidental". O Covid-19 de patente
chinesa deveria acautelar-nos de um modelo mundial à la China! Temos a alternativa
de podermos repensar o nosso sistema no respeito pelo regionalismo ou de sermos
comidos pelos tubarões.
António da Cunha Duarte Justo
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CONSTITUCIONAL ALEMÃO FORTALECE A CLASSE MÉDIA EUROPEIA