Nascer Viver e Morrer mais que um Direito é Graça
Por António Justo
A vida é feita de luz e sombra; a morte é a sombra da vida; a matéria é a
sombra do espírito. Afirmar a sombra sem a luz, defender a cultura da morte sem
ter em conta a cultura da vida, corresponderia a um reducionismo da vida à sua
sombra, significaria a negação da vida, porque, a que temos é polar, é um todo
feito de dor e alegria. Se nos preocupamos só com a sombra perdemo-nos no
abismo do ser, esquecendo que a sombra é apenas uma ilação da luz e que a
paixão inclui a ressurreição!
A discussão sobre a eutanásia oferece a oportunidade de se reflectir sobre
a existência nas suas componentes, vida e morte.
Hoje, a pressão de ligas e organizações internacionais (organizações da
ONU, Bruxelas, certas Faculdades universitárias, etc.), sobre a opinião pública
e os parlamentos, é de tal ordem que se cria, nas opiniões públicas nacionais e
parlamentos, a ideia de que seguir aquelas é moderno e sinal de
desenvolvimento. Fatal para o desenvolvimento qualitativo é que o povo não pensa, segue a
moda.
Prática na Alemanha
A Alemanha, antes de publicar a lei sobre a Eutanásia, teve uma discussão
pública alargada e sem cólicas sobre o assunto; a ela seguiu-se o debate
parlamentar com muita profundidade e dignidade, deixando fora o discurso
ideológico e político-partidário, cada deputado decidiu apenas à luz da sua
consciência. O parlamento proibiu o suicídio assistido e criminalizou o
comércio com a eutanásia.
Concretamente: nem indivíduos nem empresas podem funcionar como serviços de
apoio à eutanásia. Quem fizer negócio com um medicamento mortífero que entregue
a uma pessoa com cancro/doença incurável, é ameaçando com 3 anos de prisão. O
suicídio em si não é penalizado. Na Alemanha a ortotanásia (abreviação da
morte desligando aparelhos e renunciando ao emprego de medicamentação de
prolongamento da vida) é permitida desde que o moribundo o tenha declarado em
estado consciente. Neste aspecto a Alemanha pronunciou-se no sentido de uma
sociedade de valores cristãos.
Prática na Holanda
Na Holanda, na Bélgica e no Luxemburgo a eutanásia é legal mas mete medo a
muitos idosos que, com receio que os familiares disponham sobre eles, preferem
emigrar: http://www.dw.com/pt/idosos-fogem-da-holanda-com-medo-da-eutan%C3%A1sia/a-1050812
A ética secular
serve-se do relativismo como doutrina
Platão defendia a eutanásia para a pessoa inútil à economia e à
sociedade. Na antiguidade era comum a prática do homicídio contra as
crianças deficientes. Hitler procedia de igual modo, desde que a doença fosse
atestada por três médicos.
Nalgumas sociedades ocidentais e em sociedades materialistas comunistas
regista-se uma tendência para a elaboração de leis (pena de morte, aborto,
eutanásia e outras) que se baseiam apenas numa filosofia utilitária e
pragmatista, muitas vezes elaboradas contra os próprios ideais da
Constituição. Parte-se de um princípio de liberdade como posse e de vida como
produto na praça do mercado.
De uma maneira geral, os defensores da eutanásia fundamentam a sua opinião
no materialismo que relativiza a vida humana, não a aceitando como valor máximo
e negam-lhe qualquer sentido metafísico, reduzindo a existência a mero processo
de forças biológicas naturais. Pretendem um diagnóstico e uma decisão sem a
análise das suas consequências.
Na sequência de uma ética secular (laica) a “eutanásia selecionadora ou
eugénica” será aplicada a recém-nascidos no sentido da selecção social. Como se
fala hoje da eutanásia falar-se-á amanhã da purificação da família, do povo ou
da raça.
Querem uma ética pragmática servidora do momento e da ocasião, chegando até
a contestar o imperativo categórico de Kant: a fórmula sumula do
desenvolvimento da ética e do conviver humano ("Age como se a máxima de
tua ação devesse tornar-se, através da tua vontade, uma lei universal.").
O reducionismo relativista e materialista, de que pecam muitos
defensores da eutanásia, é alérgico ao pensamento integral e complexo;
refugiam-se na ilusão de querer construir uma realidade semelhante a um rio com
a água mas sem o leito.
Ética religiosa
A ética cristã bem como a moral das religiões em geral (budismo, induísmo,
judaísmo e islão) é contra a eutanásia e contra o matar. O valor ético e moral
da integridade e dignidade humana tem prioridade sobre princípios
económico-políticos subsidiários.
A ética cristã, uma ética da excelência, que se aperfeiçoou, crivando as
vivências dos diferentes povos e culturas ao longo dos séculos, considera a
vida como bem maior e, como tal, a promover e defender e, consequentemente, não
a interromper. Na Bíblia o rei Saul (Samuel 31, 1 a 13) pediu a morte e, como o
escudeiro o não matasse, Saul atirou o corpo sobre a espada para se matar mas
os desígnios divinos revelaram-se mais fortes, tendo ele sido finalmente morto
por um filisteu. Jesus até recusou, livremente, o hissope.
A Encíclica Evangelium Vitae indica: a eutanásia é crime contra a vida e
contra a dignidade humana pois a vida, e em especial a humana, é sagrada
(inviolável). Uma coisa é causar a morte (eutanásia activa) e outra coisa é
deixar morrer; o cristianismo não quer a dor mas reconhece também na aceitação
da dor, em estado consciente, a oportunidade para crescer espiritualmente, dado
a vida ter vários estádios e continuar depois da morte. Consequentemente a
compaixão comporta o prolongamento da vida e não da agonia. Os analgésicos e
a ortotanásia, desde que não tenham como causa directa a morte, são meios
importantes em muitas situações, também na possibilitação de uma expressão mais
condigna com a pessoa no estado moribundo. Neste sentido ainda há muito a fazer!
Controvérsia
O facto de os cuidados paliativos não impedirem “por inteiro a degradação
física e psicológica”, como argumentam os que querem a antecipação da morte por
suicídio assistido ou por eutanásia activa (um terceiro mata), não é
suficientemente fundamentado, como medida geral, contra a morte natural ou
contra a eutanásia passiva (suspensão de terapias de prolongamento da vida
determinada por testamento vital – distanásia - previsto na lei desde 2001).
Em Portugal a recomendação da eutanásia torna-se cínica quando mais de 50%
pacientes terminais morrem sem poderem ter acesso aos Cuidados Paliativos, consignados na Lei nº
52/2012 de 5 de setembro: cf. http://cdn.impresa.pt/efe/684/8198872/Posicao_da_APCP_-sobre-manifesto-PEut-vfinal.pdf
A controvérsia é boa para o apuramento de conclusões elevadas e para o
crescimento humano intelectual e espiritual. A controvérsia é perniciosa quando
enquadrada em posições estanques que querem ver tudo regulado pela lei.
Um direito implica a liberdade de escolha e esta não é plausível no nascer
e no morrer. Fala-se do direito à morte como se fala de um direito adquirido ou um
poder outorgado a executar em plena liberdade e como se uma pessoa em estádio
terminal que dá trabalhos estivesse isenta de qualquer coibição psíquica ou
social sendo-lhe indiferente o peso e o encargo que a sua situação representa
para os familiares e para o próximo. Não é lógico, em nome da liberdade,
recomendar uma decisão que exclui definitivamente uma outra alternativa
posterior. O problema da liberdade para a eutanásia vem da irreversibilidade do
acto. Os actos livres implicam sempre uma alternativa possibilitadora de
continuidade. A vida é um dom, a morte é problema e não solução… O medo da
dor, mais que da morte, leva à conclusão falaciosa de que o morrer é que dá
dignidade à vida e não a vida que dá sentido e dignidade à morte.
Muitos adeptos da eutanásia activa, contraditoriamente ao seu argumento de
liberdade humana, recusam ao Homem a sua capacidade de liberdade negando a
validade da sua subjectividade, ao alegar que o ser humano não pode preservar a
subjetividade que o assiste.
Com o argumento de que a vida nos foi imposta e da formação que nos foi
dada, consideram-nos seres condicionados que, realmente, também somos, mas não
só; este condicionamento não lhes dá o direito de nos condicionar e formatar
segundo os seus princípios modelares, querendo-nos, para tal, reduzidos à
animalidade inicial, negando-nos uma obediência orgânica para nos outorgar uma
obediência de lógica ideológica. Este reducionismo é consequência de um
reducionismo maior que consta de elaborar e conceber a vida em termos só
racionais, esquecendo que a pessoa é feita de Razão e Coração e a razão pode
ser enganada ou confundida por diferentes lógicas tal como o coração por
diferentes emoções ou sentimentos. Nem o princípio coração nem o princípio
razão têm o senhorio sobre a vida ou sobre a realidade; o Homem completo consta
de Razão e Coração numa relação de complementaridade. Se houve tempos em que
as elites das sociedades menosprezavam as faculdades da razão hoje menosprezam
as faculdades do coração.
A pessoa não pode ser reduzida à biologia, aos padrões de uma dada
sociedade ou época nem tão-pouco à jurisprudência; nem sequer pode ser
considerada como mero objecto, dado este conceito delimitar o cidadão a um objecto
de direitos e deveres, na perspectiva da polis.
Quem se legitima nisto como juiz? O facto de a constituição reconhecer ao
Homem o direito à vida não é ela que a dá ou a tira nem a lei criada por um
parlamento pode ter poder de deliberar sobre existência ou não existência de
uma pessoa. O apoio humano limita-se ao calor humano e à diminuição da dor. A
pessoa tem “direito” a ser feliz na vida independentemente de esta ser
considerada no além e no aquém; nem sempre a saúde é um pressuposto de
felicidade como prova a existência de muitos deficientes.
O moribundo tem direito a uma morte digna e tranquila, o que não inclui o
direito ao abuso nem ao homicídio por compaixão. É dolorosa a situação de
familiares que assistem a moribundos ou pessoas em estado vegetativo. A
sociedade deveria acarinha-los e assisti-los não os deixando sós na
responsabilidade e na dor. Esta pode ser uma oportunidade para se optar mais
qualidade de vida.
A assistência a moribundos é um assunto muito delicado e controverso que
não deveria provocar posições radicais. É insuficiente ficar-se por propostas
que pretendem uma ética temporal meramente pragmática sem ter em conta a
experiência secular da ética religiosa e sem a deontologia médica. Este é um
assunto que não se pode solucionar com uma simples “receita”. É louvável o
facto de esta matéria, ao contrário de outras, estar a ser objecto de uma
discussão na opinião pública antes de chegar ao parlamento.
A existência seria chata se não fosse o movimento; nela também a
controvérsia é um passo no sentido da vida.
Reflectindo
O direito de morrer com dignidade deveria constituir um dado geral aceite,
o que não implica desresponsabilizar a pessoa pelos actos que faz, ou tirar por
lei a responsabilidade a quem mata como se estes fossem privados de consciência
e não houvesse meios de evitar não matar.
Enquanto as pessoas de moral responsável discutem a defesa da vida, as
pessoas tendentes ao poder agem contra ela, caindo no equívoco de que na vida
se pode ter tudo na mão e de graça. A despenalização da eutanásia revela-se um
mau caminho que abre espaço aos negociantes da morte e a uma vida mais leviana
e irreflectida.
A defesa da cultura da morte, do aborto, da eutanásia parte de um princípio
hedonista e materialista da existência. Evita a reflexão e a controvérsia
séria, preferindo uma receita que embote a consciência popular. Ao falarem do
direito a decidir sobre o próprio destino esquecem que o ser humano é
influenciável sendo difícil poder fixar o limite entre o objectivo e o
subjectivo. A vontade também está sujeita a medos… Faz-se da liberdade tabu
esquecendo que esta é apenas um factor importante de vida mas a vida tem muitos
outros reguladores sem os quais seria impossível a sua expressão.
A religião transmitiu valores construtivos, optimistas e positivos
contrariados agora pelo niilismo que não pára perante a destruição pessoal como
se a pessoa se reduzisse a uma ideia abstracta ou a uma nostalgia passageira ao
serviço de interesses e ideias fortemente encaixilhadas. Em nome da terra,
da “realidade”, negam a sua atmosfera ou consideram-na como algo distante e
pesado como se a transcendência não tivesse sido o oxigénio que mantem e
desenvolve o ser humano. Mataram Deus e na sequência querem a morte do
Homem espiritual. Desiludidos de Deus e do espírito viram-se agora para a terra
embrutecida – materialismo- querem a população prisioneira da “caverna
platónica” sem luz, a viver da escuridão e da tanatofilia, como se a
perspectiva da luz fosse algo contra a vida e iludisse a realidade da morte.
Culpabilizam a religião de se opor a soluções simplicistas ou de surgir
como obstáculo ao exigir reflexão. Querem a dignidade vinculada à
circunstância e não à pessoa para a porem à disposição da ideologia em favor de
um poder ad hoc. Demonizam, por vezes, a religião cristã pelo facto de esta
ver no Homem um absoluto. O poder ideológico secular encontra-se em
rivalidade com o religioso quando, no sentido do Homem, se deveriam
complementar; aquele constrói a sua força na aquisição de seguidores quando
a força motivante e movente deveria ser o bem integral e integrante.
Muitos não vêem com bons olhos a renúncia que apela à metafísica, à imagem
do esforço da natureza ao tentar erguer-se na procura do Sol; não basta a
ilusão de que a natureza do Homem se reduz à procura de um lugar soalheiro mas
sem Sol; de facto, equivaleria a exigir do Homem uma outra renúncia: a renúncia
a si mesmo para, na qualidade de mero elemento, se colocar à disposição da
matéria que, com o seu poder inerente, seria reduzido ao poder do mais forte,
contradizendo a herança cultural e ética judaico-cristã e dos povos que levou a
civilização ocidental ao nível em que se encontra nos seus aspectos positivos e
negativos.
Muitos militantes da eutanásia revelam-se, na consequência, contra a
consciência humana que é uma percepção dinâmica de luta pela liberdade, uma
luta das forças escuras contra a luz que ilumina a “caverna” platónica.
Consequentes na sua negação de Deus e da ordem criada tornam-se tão
imateriais na sua especulação chegam a defender o direito de nunca se ter
nascido! Esta posição que consequentemente legitimaria a prática da selecção
darwinista social que motivou Hitler a mandar matar deficientes e a mandar
castrar pessoas com certas doenças hereditárias: tudo isto em nome de uma
liberdade e de uma felicidade que veria em cada deficiente um infeliz a quem
seria dado o direito de se antecipar à dor e assim voltar ao estado do não
criado e assim, à sua custa, a sociedade tivesse mais disposição de bens
materiais.
A liberdade individual é uma consequência da espiritualidade e do
desenvolvimento humano; a liberdade humana revelou-se como força inclusiva e
não exclusiva, possibilitando assim a arquitectura cultural e social a que
chegamos. É interessante verificar-se pela arqueologia que o desenvolvimento da
sociedade começou em torno da morte (lugares de culto). A vida não nega a morte
nem a morte nega a vida; ambas são duas formas de estar da existência.
O desejo da morte assistida (eutanásia) surge, por vezes, da falta de
assistência e solidariedade por parte da sociedade e do próximo, que não se
querem responsabilizar porque consideram a existência reduzida aos seus
aspectos de luta primitiva e individual pela vida. Desvinculam o ser individual
do ser social (zoon politikon) para que a sociedade se possa desenvencilhar, sem
dores de pensamento nem custos, do que se torna incómodo e daquilo que a
poderia comprometer.
Nestas coisas não chega uma política do levantar a mão no parlamento.
Também não é bom fomentar-se a má consciência, nem tão-pouco estimular a
consciência leviana, mas sim possibilitar discussões públicas sérias e
reflectidas para que, cada cidadão se levante da massa e possa tornar-se mais
consciente para se orientar e decidir com o máximo de conhecimento e liberdade:
só então pode ser responsável e tomado a sério nas decisões que toma. A
discussão sobre a eutanásia - matéria muito complexa - não pode ser encurtada
por uma política ou ideologia qualquer, até porque as massas abdicam da
reflexão e da própria responsabilidade julgando como matéria segura o que se encontra
legislado e dado a vida e o seu sentido implicarem uma reflexão das
diferentes disciplinas complementares, desde a bioética, à medicina e à
teologia. A pessoa e a vida não devem ser relativizadas, devem ser
reconhecidas como bens absolutos que, na modelação da própria vida segundo o
imperativo categórico kantiano, superam o poder dos Estados (A pena de morte,
para um cristão significa a usurpação do estado que exerce o poder sobre algo
que o supera).
O direito de decisão é conferido por Deus ao indivíduo (a religião apenas o
formaliza); nenhuma ideologia ou lei poderá assumir-se o direito de o manipular
ou de se livrar dele mesmo quando sob o pretexto de ajuda. A lei e a norma
tendem a fazer de um caso todos os casos embora a consciência de cada um seja
inalienável.
É fácil apregoar-se como filantrópico a oferecer às pessoas o direito de
acabarem com a sua vida ou com a vida do outro em seu nome ou das
circunstâncias.
O cristianismo acentua a assistência solidária e caritativa na morte,
também com o emprego de paliativos, respeitando sobretudo a consciência
individual e a responsabilidade da decisão reflectida de cada um. Não chega ver as
ondas da superfície; é preciso criar-se espaço para se poder perscrutar e
sentir o que elas encobrem das profundezas do mar. Esta é a advertência
necessária mas sem coibir!
A vida é o positivo da existência, é optimista não se deixando perder em
qualquer beco pessimista sem saída nem tão-pouco reduzir-se ao seu negativo. A
vida chama e tem um sentido e este é infinito; a existência inclui nela o Sol
que dia-a-dia convida a natureza ao esforço do levantar-se para a luz. Que
seria da borboleta se no seu estádio de casulo, em nome do direito e da
liberdade, fosse impedido o seu desenvolvimento!
A alma treme perante o vazio, mas entre os calafrios pressente, no extremo
do túnel da existência, uma luz quente que sempre brilha e a espera!
António da Cunha Duarte
Justo
Teólogo e Pedagogo
Pegadas do Tempo: http://antonio-justo.eu/?p=3488
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