TEOLOGIA DA LIBERTAÇÃO NO DIÁLOGO DOUTRINA-PASTORAL
Por António Justo
Com a Exortação Apostólica "A Alegria
do Amor" Francisco I provoca uma nova liberdade pastoral e uma "descentralização salutar" nas
relações entre a igreja mundial e as igrejas locais. Fundamenta uma certa
flexibilidade na doutrina em questões de moral sexual, sem definir novas
regras. Possibilita também a admissão de divorciados recasados aos sacramentos.
Pastoral versus Dogmática em „A Alegria do
Amor"?
A fé e a Igreja não podem ser estranguladas na moral. Uma igreja
universal que se quer católica tem que lidar de forma cautelosa (e “estadista”)
com as diferenças inevitáveis em política, doutrina e moral. Francisco quer que
a presença da Igreja na sociedade seja fraterna.
A Igreja católica mundial tem de manter o seu caracter essencial de
comunidade institucional e de vida; como tal tem de incluir a fé como obediência à doutrina da Igreja e por outro lado
respeitar a consciência e a experiência individual de cada cristão no aspecto
místico que implica a relação pessoal com Deus: esta tensão característica
no cristianismo é salutar para a Igreja e para a sociedade, garantindo-lhe
desenvolvimento e perenidade.
Neste sentido, os padres têm de estar atentos para não se limitarem a
uma ética de atitudes sem contemplar a ética da responsabilidade (1)
De facto, pessoas com a mesma atitude moral podem chegar a diferentes
conclusões sem terem necessariamente de caírem numa moral situacionista; por
outro lado somos definidos não só na qualidade de indivíduos mas também de
comunidade orgânica. O mandamento do
amor e a virtude da misericórdia também não podem anular, sem mais nem menos, a
inteligência e a justiça humana.
Na teologia sempre haverá uma
discrepância entre aqueles que consideram a fé como expressão de experiência
directa com Deus e pensam encontrá-la em tudo e aqueles que crêem mais na
obediência à doutrina da igreja, pensando que a questionação desta corresponde
a uma ofensiva contra a Igreja. Cada pessoa tem um rescript de salvação e
como tal, nestes assuntos, importa ter muita discrição e muita sintonia.
Integração da Teologia da Libertação
Desde 2013 a Igreja inteira (leigos,
sacerdotes, bispos e cardeais) discutiu os vários assuntos de família e
sexualidade no intuito de chegar a uma reforma da moral sexual católica. O Sumo Pontífice descontrai a sexualidade, clarificando em "Alegria
do Amor" que para cada discussão não é necessário um esclarecimento
doutrinal de Roma.
Temos um grande papa que consegue resolver o impasse entre teoria e
praxis conjugando a ortodoxia na orto-praxia sem cair no relativismo nem no
subjectivismo de um Deus elaborado “à la carte” como querem muitos movimentos
exotéricos. Francisco põe em relevo a unidade de doutrina e prática, mas deixa
espaço para a interpretação da doutrina. Esta prática exige grande maturidade
da parte dos cristãos, conscientes de uma certa lei da ambivalência da realidade
social e pessoal, não reduzíveis a uma mera ressonância de alma nem tão-pouco a
uma doutrina racional.
Pelo que me é dado
deduzir, com o papa latino-americano, dá-se um pequeno ajustamento de
teologias: a teologia de âmbito doutrinal europeia (centrada na ortodoxia) abre
uma janela no sentido da teologia latino-americana da orto-praxia dando espaço
não só para o processo científico dedutivo como também para o indutivo
pastoral. A unidade anterior pastoral-doutrina abre-se à teologia da libertação
no sentido de uma legitimação teológica mais localizada (também maior autonomia
das igrejas locais). As conferências episcopais passam em parte a ter poder
decisivo quando se trata de interpretação prática de normas morais em questões
de sexualidade e deste modo desabonar um pouco as congregações do vaticano (2).
Do balanço entre indivíduo e comunidade entre
consciência e norma
O dilema, entre o
ideal católico do matrimónio indissolúvel (entre homem e mulher) e a
possibilidade das pessoas contornarem esse ideal através da sua consciência
individual responsável, permanece, mas deixa uma porta aberta. De facto temos a
doutrina da Igreja configurada nos dogmas (verdades científicas teóricas da fé)
que dão coerência e sustentabilidade à Igreja e por outro lado a pastoral
(litúrgica, profética e de serviço) que é a sua teologia aplicada e vivida sem
perder a ligação ao exercício da autoridade da igreja petrina.
Para melhor se compreender a complexidade da questão, poder-se-ia
estabelecer um paralelo simplificador entre o âmbito religioso e o âmbito
civil: A dogmática (e o Papa) está para a Constituição dos países como a
pastoral para o direito civil (A Constituição regalaria o ideal e a lei faz a
adaptação à situação concreta das necessidades do cidadão). De facto, para a Igreja, a pessoa é centro e fonte
de todo o direito: ela é portadora do germe divino; a dignidade humana
vem-lhe do facto de todo o ser humano (crente ou não crente) ser filho de Deus
e como tal portador de um valor moral e espiritual inerente que o torna
soberano em relação aos seus actos e decisões baseadas na sua consciência
responsável, não sendo subordinado a sacrificar novilhos aos ídolos sociais e
institucionais. O homo cristianos é soberano,
segue a sua consciência mas forma-a a partir do nós.
Um outro dilema será: ou seguem a autoridade magistral do papa como ele
a não quer, ou não seguem o Papa para seguirem a própria servidão de cariz caseiro. Sim porque o cristão consciente,
embora pense por ele, pensa a partir do nós, compreende-se como indivíduo e
como comunidade e sabe que a ética é transmitida pela igreja; o Deus de Jesus
Cristo não é só dos cristãos, Ele é de todos; é comunidade e também pessoa
encarnada. Daí a difícil missão de uma igreja que se tem de manter católica. Constitui sempre um desafio para a Igreja conseguir manter
o balanço entre indivíduo e comunidade entre consciência e norma, entre as
subculturas e a cultura que lhes dá sustento.
Na sociedade actual domina imperceptivelmente uma ideia do politicamente
correcto e um certo sentimentalismo do bonzinho que podem ser tão nefastos para
o progresso do indivíduo e da sociedade como a violência que “bons” e “maus”
criticam. Não chega ter um coração bom, é preciso activar também uma
inteligência iluminada, doutro modo chega-se ao ponto de se confundir justiça
com injustiça (vejam-se diferentes problemas políticos actuais). Uma atitude
cristã de identificação com os humildes, de defesa dos pobres, da paz e dos
direitos humanos implica grande capacidade de saber e de discernimento, porque
nem todas as desigualdades sociais nem cada controlo nas fronteiras se pode
declarar como não éticos ou não cristãos. Quem
exclui a negatividade da vida torna-se unilateral e terá de pagar a factura com
a saúde ou fazê-la pagar a alguém. A vida existencial é polar e um polo não
pode excluir o outro; não há o eu sem o outro nem o outro sem o eu, não há
sombra sem sol. Importa fomentar uma sociedade de pessoas boas conscientes que
são portadoras das forças do bem e do mal mas com uma vontade forte de praticar
o bem; a inconsciência cria a espécie do mauzinho ou do bonzinho que cospem
descontentamento.
Jesus, no caso da mulher
adúltera, prescindiu
de explicar uma ideia de casamento, família e sexualidade, deixando a análise
do problema à pessoa, à Igreja e aos teólogos. Jesus não julga ninguém
definitivamente; a Igreja também não, ela sabe que a vida é relação resumida na
fórmula trinitária Pai-Filho-Paráclito e na de Deus com a sua criação no
mistério do Deus-Homem. O Paráclito acompanha cada pessoa e expressa-se de
maneira relevante na relação (cura animarum) entre o padre e o cristão. Francisco I, como pastor, segue o princípio de João: "Nem eu te
condeno”. Em vez de cavalgar no cavalo alto da moral, o Papa procura descer a
todo o lugar onde há pessoas.
Com “A Alegria do Amor” o papa não muda as leis da Igreja; apenas alarga o âmbito pastoral de reflexão e de interpretação. Pressupõe maior
capacidade de reflexão e de autonomia responsável no cristão em geral e na
pastoral. O pastor, o cura, não deixa de
apregoar a fé da Igreja, no diálogo íntimo com o fiel deixa-se orientar por uma
pedagogia da graça e deixa a este a decisão.
Segundo a doutrina católica Deus tem um relacionamento directo com todas
as pessoas, independentemente do facto de serem acompanhadas pastoralmente ou
não. Na Cura de almas cada cristão é chamado e capacitado a exercer o cuidado
pastoral de acompanhamento numa relação de empatia com o irmão e na consciência
de que faz parte de uma comunidade de vida espiritual.
O Papa defende-se dos críticos
A Exortação
Apostólica “A Alegria do Amor”, dirigida sobretudo ao clero, provocou críticas
nalguns cardeais que apresentaram dúvidas sobre o documento que trata do amor,
da família e do celibato. Os defensores da doutrina pura (dogmática) desejam saber se divorciados
que casam de novo ou que vivem com uma outra pessoa podem participar no
sacramento da comunhão depois da absolvição do sacramento da penitência.
Dentro da igreja e especialmente na cúria vaticana formou-se resistência
contra ele e contra a sua exortação porque têm medo de ele ir longe demais no
seu desejo de mudança. O papa responde “ que não são as engelhas que devemos
temer na igreja mas sim a sujeira” porque os seus planos de reforma não são
apenas operações de beleza para eliminar as rugas. O papa quer ver nas reformas
um sinal da veracidade e do processo do crescimento de uma Igreja viva que não
cheire a naftalina. Aceita a opinião dos críticos e da discussão teológica mas
adverte que não se refugiem por trás das aparências de tradições ou do
habitual, alegando que a “resistência muitas vezes vem vestida em peles de
cordeiro”.
O papa não respondeu directamente a quatro cardeais que voltaram à
questão argumentando terem escrito “movidos por um cuidado pastoral profundo”.
Naturalmente nem o papa deve dispor da mensagem cristã, como obstam
alguns, devendo apenas administrá-la. Facto é que Francisco anuncia a mensagem
cristã e pratica-a. Francisco I procura Jesus Cristo também nas margens da
sociedade e não apenas no endurecimento institucional. Ele exorta os padres a
olharem para a sociedade com um olhar de mãe e não apenas com um olhar de pai
rigoroso porque sabe que Deus é pai e mãe.
Como dito, a questionação do sacramento do matrimónio não pode ir longe
demais mesmo a pretexto da misericórdia.
Divorciados novamente casados podem frequentar os
sacramentos
Francisco é um papa que não se limita nem refugia na autoridade clerical.
Quer renovar a igreja no que ela tem de exterior investindo numa pedagogia da
misericórdia. Também na família quer mais misericórdia pastoral no tratamento
dos divorciados. A partir de agora, os padres – em sintonia com as conferências
episcopais - podem permitir o acesso ao sacramento da Comunhão a divorciados
recasados e invocar como fundamento a “Amoris Laetitia”.A exortação apostólica abre
as portas aos divorciados recasados, e tem em conta a vida humana como processo
e não como algo acabado num determinado momento da História ou da vida, mas ao
mesmo tempo não descura o aspecto orgânico da vida social. Acentua o aspecto
pastoral sobre a dogmática (doutrina) nas convicções extramaritais. O papa reconhece de facto, a admissão dos
divorciados recasados à comunhão em cada caso individual. O padre tem um papel
de responsabilidade acrescentada de cuidar dos fiéis interessados na caridade
pastoral. Nova é a ideia introduzida pelo Papa ao possibilitar o voltar a casar
e o receber os sacramentos da Penitência e da Eucaristia, sem anulação do
casamento anterior. Naturalmente, também esta via permanece aberta. Há
situações que exigem uma assistência pastoral mais pessoal e que pressupõem uma
grande capacidade de discernimento em relação à pessoa e à comunidade. Numa nota de
rodapé de "A Alegria do Amor", o papa diz que divorciados novamente
casados poderiam "em certos casos" tirar proveito da "ajuda dos
sacramentos".
O papa restitui ao cristão a responsabilidade de divorciados novamente
casados, serem responsáveis e discretos ao aproximar-se do sacramento da
comunhão. Havia bispos que antes desta exortação apostólica recomendavam a
comunhão espiritual a divorciados novamente casados. Alguns bispos sugerem um
processo de aprofundamento da própria consciência (uma via paenitentialis –
caminho da penitência) com o apoio de um bom acompanhante para depois de um
exame de consciência profundo, o cristão seguir a própria consciência e esta
decisão ser respeitada. Francisco I apela para a responsabilidade da
consciência individual (como última instância moral do cristão). Um papa que no
sentido cristão deixa muita folga para a liberdade e responsabilidade
individual pode ser incómodo também numa sociedade civil, cada vez mais
massificada e alienada pela ditadura do pensamento politicamente correcto (uma
sociedade, por vezes pedante e ingénua, que se julga apta a poder julgar outras
sociedades não se dando conta que é prisioneira do próprio espírito do tempo
tal como outras o foram). Naturalmente, não será fácil fazer despertar uma
consciência e uma atitude cristã adulta numa polis em que as pessoas são demasiadamente
condicionadas pelo ego infantil e pelo superego.
O confessionário não é uma “câmara de tortura” mas sim um lugar de
misericórdia; dele surgiu o aconselhamento
psicológico laico. Porque nunca Por fim o que prevalecerá será a decisão do
penitente se deverá ou não ir à comunhão.
“Na Igreja, a autoridade e a jerarquia são um serviço”, titula o
“Observatore Romano”. “Alegria do Amor”, nas suas 300 páginas, deixa lugar para
interpretação e para experimentação sem que os bispos se insurjam uns contra os
outros nas diferentes posições. Também não é contrária à carta de João Paulo II
"Familiaris Consortio" (1981). Ouvi do cardeal de
Viena, Christoph Schönborn a afirmação de que o papa, com "laetitia
Amoris", permite em cada caso individual, a admissão à comunhão.
O Papa reformador que mexe com o mundo
Eleito papa a 13.03.2013, vive de maneira simples e sobressai nele o
braço estendido para acolher, saudar e abençoar. Na sua simplicidade e atitude
atingiu os corações do povo comum e mesmo daqueles que não crêem. O papa
procura estabelecer pontes em todo o lugar onde é possível, na Suécia esteve
presente no início do 500° aniversário do reformador protestante Lutero. Também
o encontro do papa Francisco com o patriarca russo ortodoxo Kyrill I em Havana
foi um grande passo: foi a primeira vez que um papa se encontrou com um
patriarca de Moscovo. Em relação aos refugiados solicita que se combata contra
a “globalização da indiferença”. Na sua visita à Polónia foi um pouco incómodo
para com o governo ao defender a aceitação de refugiados. É excelente na defesa do meio ambiente com a sua encíclica “Laudato si'
(24 de maio de 2015) ao estabelecer uma relação directa da exploração da terra
(esgotamento dos recursos naturais) e da injustiça social. Tornou possível
o diálogo entre os Estados Unidos e Cuba e entre Israel e Palestina. Com a
reforma da Cúria romana conseguiu juntar competências estabelecendo um
ministério para assuntos de família, leigos e protecção da vida e um outro para
migração, combate à pobreza, direitos humanos e defesa do ambiente.
Sem memória não há pensamento! A Igreja institucional é o depósito da
memória que se vai sempre alargando e concretizando num diálogo íntimo entre
indivíduo e comunidade.
António da Cunha
Duarte Justo
Teólogo e pedagogo
Pegadas do Tempo, http://antonio-justo.eu/?p=4047
(1) ÉTICA
ENTRE CONVICÇÃO E RESPONSABILIDADE: http://antonio-justo.eu/?p=3884; Ética Republicana http://antonio-justo.eu/?p=3895 ; Um
Exemplo De Ética Republicana Socialista Aplicada: http://www.solnet.com/09set16/pena&lap/penalap3.htm ; POLÍTICA DO
POSTFACTO - ÉTICA ENTRE CONVICÇÃO E RESPONSABILIDADE – DO COMPROMISSO ÉTICO
ENTRE IDEALISMO E REALISMO: http://antonio-justo.blogspot.de/2016/10/politica-do-postfacto-etica-entre.html; Ética da
Responsabilidade pressupõe a Educação para a Liberdade: http://palopnews.com/index.php/cronistas/antoniojusto/1721;. O divórcio
da política e da ética: http://www.debatesculturais.com.br/o-divorcio-da-politica-e-da-etica/ ; Num outro
texto escreverei sobre a ética de timbre cristão! Estaria disposto a publicar
livro se fosse manifestado interesse.
(2) No que toca ao aborto, à teoria do género e ao casamento gay permanece
como orientação o catecismo da Igreja católica. Deixa à
consciência individual a decisão interior sobre o emprego de meios de
anticonceptivos e sobre a decisão de recasados irem à comunhão.
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