Da Maneira como se trata a nossa Memória
colectiva
por António Justo
Memória é uma
capacidade, um centro de registo, de armazenamento e de recuperação/recordação.
Recordar quer dizer, ir ao tombo da memória, trazer ao coração. Recordação é o
facto, o conteúdo que é chamado à tona da memória.
Cada pessoa,
cada grupo ou partido, cada país, tem no seu registo determinados
acontecimentos e pessoas que gosta, mais ou menos, de recordar, numa
preocupação de identificação e de criar identidade. Assim, nas comemorações do
Estado cada regime político procura empolgar as recordações/personalidades que
mais confirmam a própria posição/identificação.
Comemorações: Recordação contra a Memória
colectiva?
Não é o mesmo,
comemorar um 10 de Junho (dia de Portugal, Camões), uma revolução dos cravos
(25 de Abril), um 5 de Outubro (República), uma restauração da independência,
etc. Por trás da chamada de cada acontecimento à
memória, esconde-se uma intenção política específica. Se se comemora a
monarquia carpem os republicanos, se se comemora a república choram os
monárquicos. Com uma sociedade rica, tão polivalente e diferenciada, não se
torna fácil satisfazer a todos; a verdade é que das lágrimas e contentamentos de uns e outros se
constrói o que somos. Por isso, e para termos uma nação de todos e completa, há
que integrar tudo (aspectos positivos e negativos de cada regime e de toda a
vida portuguesa) na memória colectiva, não a reduzindo a uma ou outra lembrança
que se vai oportunamente buscar ao fundus da memória. Assim, há que
fomentar a preservação da memória toda, no sentido de uma consciência
portuguesa responsável.
Trata-se de
fomentar uma memória colectiva do povo, que transcenda personalidades e regimes,
como adverte o sociólogo e filósofo Maurice Halbwachs; diria: que não se limite
a comemorações e monumentos.
Na memória colectiva portuguesa estão
latentes, entre outros: os descobrimentos, a ocupação espanhola, o desastre de
Tanger, o terremoto de Lisboa, o mapa cor-de-rosa, o Estado Novo e o 25 de
Abril.
Fernando Pessoa
recorda-nos: “Há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas, que já
tem a forma do nosso corpo, e esquecer os nossos caminhos, que nos levam sempre
aos mesmos lugares. É o tempo da travessia: e, se não ousarmos fazê-la, teremos
ficado, para sempre, à margem de nós mesmos.” Trata-se aqui de fazermos a
travessia sem perdermos a identidade, tendo de recorrer para isso às pontes da
memória colectiva, na consciência de que pontes são para ligar e unir.
O memorial da
consciência colectiva e do inconsciente colectivo deverá ter em conta o intuito
de uma convergência em que seja reconhecida a aura holística de um povo em marcha.
Um povo que integra na sua memória o positivo e o negativo de todos os
contraentes no serviço ao bem-comum e não apenas os marcos das lutas interinas
pelo poder desviador de energias. Quer-se uma evolução e transformação
construída já não com base na interdependência de egos e grupos mas numa
relação interpessoal e intergrupal ao serviço do nós. O processo da recordação
dos tempos sombrios e dos sustos da História já não se processará no sentido de
branquear ou denegrir acontecimentos mas no de reconciliar um povo e ajudar a
cicatrizar as feridas das diferentes facções.
O nosso futuro ditado por outros
A
sociedade portuguesa condicionada por uma política a viver do dia-a-dia e dos
ventos vindos de fora não tem tempo para se auto-analisar nem auto-renovar; por isso sente o progresso, sobretudo, como
um imperativo de negação do passado. Vive na dependência do ruminar rápido de
ideias novas importadas e, consequentemente, no recalcamento do próprio
passado. Na impossibilidade de elaborar uma própria filosofia congruente
com a sua identidade de povo, esgota-se numa
memória comunicativa ad hoc e funcionalista para uso de casa, sem se preocupar com a memória colectiva cultural,
aquela que assegura a sustentabilidade do desenvolvimento. Dá demasiada
importância às lembranças comemorativas (folclore) em detrimento da memória colectiva
cultural. Segue na Europa o modelo de destino de outros povos, seguindo muito
embora, de olhar ressentido, os acontecimentos ditados por potências como USA,
Rússia e China. Neste sentido, o Norte com a Alemanha, que tem recursos
suficientes de análise sinóptica, continuará a ditar o destino de povos mais ou
menos satélites porque incapazes de parar para poderem programar futuro. É
preciso repensar Portugal e renovar as suas instituições em função dele como
biótopo cultural de um grande biossistema. (A diminuta Suíça é um bom exemplo
de autonomia e determinação do que seria muito mais possível num país como
Portugal).
A memória
colectiva compartilhada estabelece a ponte entre o passado e o presente no
serviço de sustentabilidade e identidade. Não aponta para as águas sujas do
vizinho que correm debaixo da ponte à maneira da afirmação do adolescente
rebelde em oposição ao passado, contra os pais. A energia de identificação
assemelha-se à metamorfose do casulo para a larva e da larva para a borboleta.
Cada um tem um ponto de referência da sua memória que dá consistência à sua
relação diacrónica identitária. Uma memória honesta não revitaliza um ou outro
aspecto do passado para afirmar o seu ponto de vista mas deixa sim o passado
ser passado, na sua cor local para poder, através dele, compreender o presente
que com base nesta atitude se torna crítico e inovador.
Uma Alemanha
continua a ter grande pujança na história actual porque cultiva intensamente a memória
colectiva (mediante uma cultura da recordação activa) como caminho da formação
da própria autoconsciência (Schelling fala da recordação como interioridade)
que permite a mudança na continuidade (Identidade adulta ao contrário de
identidade adolescente). Isto pressupõe uma lógica policontextural em que se
considera a história como vivência algo maternal em contínua gravidez. Isto
pressupõe uma visão antropológica e sociológica de convergência que vive da contextualização
e da recontextualização em direcção a um mundo feito de experiência e memória e
de observação e fantasia.
A nova ordem será inclusiva
O desafio do
presente é de tal ordem que torna ridícula a velha estratégia partidária
divisionista; todas as forças unidas são poucas. O enquadramento da política em
termos de esquerda ou direita tornou-se antiquado, numa altura em que as
mundivisões políticas e económicas se sobrepõem e em que a consciência jovem
procura integrar os polos, numa orientação holística de concepções e visões e
numa estratégia de respeito valorativo de todas as perspectivas para uma praxis
do ser e fazer.
A
história terá que se compreender numa crítica de sobreposições de épocas no
reconhecimento do ser (identidade) da cultura e do homem. Não pode contrapor-se
sistematicamente a uma época ou a qualquer das suas expressões ideológicas. Uma identidade cultural é dinâmica e interactiva
não se processando aos saltos. Não
nos podemos divorciar do passado considerando-o como encerrado; a sua memória é
fonte permanente de discussão e interpretação criativa. Dá oportunidade de
sustentabilidade às várias forças ideológicas de modo a submeterem-se a uma
autorreflexão e contextualização que possibilita continuidade num dinâmico de
aferimento aos sinais dos tempos. Também o contraste ideológico-partidário
não pode continuar a ser apresentado apenas de forma descritiva, dado também
ele dever ser concebido de forma integrativa e não pela exclusividade de
ideologias antagónicas e reducionistas numa concepção estreita e curta da
História concebida em termos de posse e não de processo que é. Numa estratégia
de tentativa e erro inerente a cada grupo, ideologia ou política.
No diálogo a criar e memorizar a palavra
mágica será inclusão. Trata-se não só da inclusão das várias forças e dos
sujeitos na comunidade mas da sua participação consciente no fazer público. A inclusão do passado na elaboração do
presente implica intencionalidade e empenho no espírito de pertença, com o
substrato de uma filosofia do nós. Urge criar uma intencionalidade do nós
como teoria da percepção estética. Isto implicaria uma socialização do
pensamento e a disposição de se sair do corredor de ideias feitas.
Na memória colectiva também se documenta
o oculto e o segredo, aquela parte onde se pode ver, ler e ouvir a reflexão do que
não é interpretação.
A capacidade de transferência a nível de
épocas e de cultura serve a percepção da mudança histórica numa diferenciação
local garantidora de pluralidade.
António da Cunha Duarte Justo
www.antonio-justo.eu
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