sábado, 13 de dezembro de 2025
UE VAI TAXAR TODAS AS ENCOMENDAS PEQUENAS A PARTIR DE 2026
Santa Luzia e a resistência da consciência face às ideologias do tempo
A LUZ INTERIOR COMO FORMA DE LIBERDADE
Santa Luzia (Lúcia), que hoje se festeja, simboliza a luz interior, a fé consciente e a liberdade. Mulher do século III, recusou submeter-se a uma ordem que confinava as mulheres ao silêncio e à posse, escolhendo a fé e a autodeterminação. O seu nome, “a Brilhante”, indica uma luz que nasce de dentro e não depende do exterior.
Venerada como padroeira da visão, Santa Luzia representa a capacidade de ver para além das trevas do seu tempo e do nosso. A tradição das coroas de luz não é folclore, mas sinal de que cada pessoa é chamada a ser portadora de luz, orientada pela fé e pela consciência.
Num mundo onde se tenta retirar às pessoas a fé e a liberdade interior para melhor as dominar, Santa Luzia recorda que a fé autêntica rompe com a injustiça. A fé pessoal é a luz que ninguém pode apagar. De facto, ela é a última fronteira da Liberdade. No Advento, ela convoca-nos a despertar e a resistir às trevas, tornando-nos luz num mundo marcado pelo medo e pela opressão.
António da Cunha Duarte Justo
Ver artigo completo em Pegadas do Tempo: https://antonio-justo.eu/?p=10491
sexta-feira, 12 de dezembro de 2025
A DECISÃO DE EMERGÊNCIA DA UE SOBRE ATIVOS RUSSOS EXIGE VIGILÂNCIA DO CIDADÃO
Introdução: Um Precedente Perigoso
A recente decisão da União Europeia de manter imobilizados os ativos do Banco
Central da Rússia, baseada numa cláusula de “emergência económica”, consolida
um padrão preocupante porque arbitrário. Este mecanismo, justificado como
excecional, permite contornar a regra da unanimidade
entre Estados-Membros, princípio fundador que garante equilíbrio e soberania
dentro do bloco. A prática, já testada durante a pandemia de COVID-19, revela
como a classificação de uma situação como “emergência” serve frequentemente de pretexto para decisões
políticas rápidas, pouco escrutinadas e potencialmente arbitrárias.
O Equilíbrio Perdido: Segurança contra Soberania
Este caso vai além do juízo sobre a Rússia e coloca uma questão fundamental: qual é o equilíbrio adequado entre medidas de
segurança económica ou estratégica e os princípios de propriedade privada e
soberania financeira? E, sobretudo, quem decide esse
equilíbrio, e com que mandato? O que hoje se aplica a ativos
russos pode, amanhã, justificar o bloqueio de contas de qualquer cidadão ou
Estado sob nova “emergência”. A arrogância do poder, a pretexto do COVID e da
Guerra, está a corroer as garantias legais e a tornar-se insuportável para
cidadãos conscientes.
Geopolítica na UE: A Lei do Mais Forte
A guerra na Ucrânia evidenciou, de forma crua, as divisões geopolíticas na
Europa. Em vez de uma resposta verdadeiramente coletiva, assistiu-se ao oportunismo de uma Europa
dividida, onde os
interesses das grandes potências, notadamente o núcleo da E-3 (Alemanha, França e,
outrora, o Reino Unido), frequentemente se sobrepõem aos dos
demais Estados-membros. Para impor os seus interesses, estas potências
recorreram ao estratagema da “emergência”, suspendendo o compromisso da
unanimidade e, com ele, o principal mecanismo de proteção das soberanias
nacionais mais pequenas.
Os Pequenos Estados: Campo de Batalha das Potências
Esta dinâmica segue a lógica da “lei do mais forte”, que só é contida por um poder
equivalente. Na sua ausência, os países menores tornam-se o campo de batalha onde as potências disputam influência, vendo-se obrigados a “pôr-se em bicos
de pés” para se alinharem com os grandes. Essa posição é instável e leva à abdicação dos seus próprios interesses
nacionais, como se
observa no isolamento imposto a países como a Hungria quando ousam divergir. O
fraco é instrumentalizado, e a solidariedade europeia revela-se seletiva.
Consequências: Erosão da Confiança e Danos Colaterais
O congelamento prolongado de ativos soberanos, agora normalizado como procedimento
automático, fragiliza a confiança no sistema financeiro internacional e levanta
sérias dúvidas sobre a proporcionalidade e a transparência das instituições da UE. Além disso, o recurso crescente a
sanções económicas como instrumento político raramente atinge apenas as elites;
os danos espalham-se maleficamente por sociedades inteiras, afetando cidadãos
comuns tanto do lado sancionado como do lado sancionador. A história mostra que
os conflitos são muitas vezes alimentados por elites, mas os custos são invariavelmente
distribuídos pelos povos.
Conclusão: O Imperativo da Vigilância Cívica
Num momento em que decisões cruciais são tomadas em nome da Europa, é
fundamental que os cidadãos mantenham um
espírito
crítico aguçado e
exijam transparência absoluta. É urgente recordar aos representantes que a
democracia não pode degenerar num governo tecnocrático, autoritário
e opaco, desligado
do bem comum. A vigilância cívica
é o último garante contra a corrosão da democracia, das liberdades e o abuso de
poder. Não podemos permitir que “emergência” se torne sinónimo de arbitrariedade
institucionalizada.
António da Cunha Duarte Justo
Pegadas do Tempo: https://antonio-justo.eu/?p=10486
quarta-feira, 10 de dezembro de 2025
Satisfação vocacional e o Risco de burnout na Vida sacerdotal
CUIDAR DE QUEM CUIDA
Inquéritos feitos a padres nos EUA em 2025 (e na Europa) revelam níveis elevados de sacerdotes que vivem a sua vocação com satisfação e sentido, mas enfrentam desafios estruturais graves: sobrecarga, solidão, risco de exaustão, falta de apoio institucional. Ao mesmo tempo, os padres revelam uma clara visão de futuro: priorizar juventude, famílias, evangelização e serviço social, uma Igreja mais “de rosto humano”, comprometida com o mundo real (1).
As percepções sobre liderança, bem-estar comunitário, confiança etc. podem variar muito de diocese para diocese; os resultados gerais não dizem tudo sobre contextos particulares.
Uma realidade que pede atenção e misericórdia
A Igreja é uma família. E como em qualquer família, quando alguém se sente cansado, sobrecarregado ou só, todos somos chamados a reparar, escutar e ajudar.
Em muitas comunidades portuguesas e europeias, os padres vivem hoje com grande dedicação, mas também com um peso crescente de responsabilidades: várias paróquias a cargo da mesma pessoa, exigências administrativas, deslocações constantes e expectativas que nem sempre são humanas porque puxam mais para fora do que para dentro.
Muitos continuam a servir com alegria e fidelidade. Outros vivem momentos de cansaço profundo, solidão ou stress, nem sempre visíveis, nem sempre partilhados.
Reconhecer esta realidade não é criticar a Igreja, mas amá‑la com verdade porque somos todos humanos.
Alguns dados simples para compreender melhor
- Em várias regiões da Europa, incluindo Portugal, a proporção aproxima‑se hoje de 1 padre para 3.000 a 4.000 fiéis.
- Estudos europeus e internacionais indicam que cerca de 30% a 40% dos padres apresentam sinais de cansaço emocional prolongado (burnout) em algum grau.
- Padres mais jovens ordenados após 2000 ou com múltiplas paróquias tendem a sentir maior pressão e solidão.
- Em Portugal, uma investigação recente em que foi aplicada a ferramenta psicológica Francis Burnout Inventory (FBI) que mede a saúde mental no trabalho (exaustão emocional e satisfação no ministério) aplicada a padres portugueses (amostra de 266) confirma que também entre nós existem sinais de exaustão associados à falta de descanso, de apoio regular e de partilha fraterna e também pensamentos sobre deixar o ministério.
Estes dados não descrevem pessoas concretas, mas ajudam‑nos a perceber melhor o contexto em que muitos sacerdotes vivem hoje.
Quando o cansaço se prolonga
Quando a sobrecarga se prolonga e não se é escutado nem cuidado, o desgaste pode levar a:
- Ansiedade, depressão e doenças psicossomáticas;
- Solidão profunda e perda de alegria ministerial;
- Distanciamento afetivo das comunidades;
- Risco de abandono do ministério;
- Empobrecimento da vida pastoral das paróquias e da vida comunitária.
Cuidar dos padres é cuidar da qualidade da vida cristã de todos.
Uma palavra de gratidão aos padres
A entrega do sacerdote é preciosa e a sua humanidade também.
Jesus não chamou servidores incansáveis, mas amigos. Descansar, pedir ajuda, partilhar o peso com irmãos e comunidades não diminui a vocação, pelo contrário, protege‑a.
A fraternidade entre padres, vivida com amizade, oração e partilha sincera e com a oração partilhada é uma das maiores fontes de cura e perseverança.
A paróquia é uma comunidade de vida
A paróquia não é apenas o lugar onde o padre trabalha, é uma comunidade de corresponsáveis, uma comunidade de vida.
Cada comunidade pode ser mais leve e mais fraterna quando: partilha tarefas e responsabilidades; respeita limites e tempos de descanso; valoriza a presença humana do padre, não apenas o que ele faz; cria equipas e ministérios activos e valoriza momentos simples de convivência.
Uma comunidade viva não sobrecarrega o padre, caminha com ele anunciando o Evangelho com gestos concretos.
Caminhar juntos com esperança
A Igreja precisa de bispos que sejam pais e pastores, não apenas gestores.
Estas palavras não nascem de críticas, mas de um desejo simples: uma Igreja mais atenta, mais humana e mais evangélica.
Cuidar de quem cuida é uma missão de todos.
“Vinde repousar um pouco comigo.” (Mc 6,31)
António da Cunha Duarte Justo
Pegadas do Tempo: https://antonio-justo.eu/?p=10482
(1) O relatório do inquérito de 2025 feito nos EUA a padres sobre a sua situação pode ser consultado em https://catholicproject.catholic.edu/wp-content/uploads/2025/10/NSCPWave2FINAL.pdf entre outras coisas identificou que ~ 40% dos padres ordenados após 2000 manifestaram sentimentos de solidão em algum grau. Cerca de 39% dos padres relataram ao menos um sintoma de “burnout” (cansaço emocional, esgotamento, visão negativa) e 5% relataram ter todos os sintomas. Há diferença entre padres diocesanos (mais em risco — 7% apresentam “alto burnout”) e padres religiosos (2%).
Os padres que responderam à pesquisa mantêm níveis elevados de “florescente” pessoal: pontuação média de 8,2/10 (igual à de 2022) ou seja, saúde mental, propósito, relações sociais etc., em bom nível.
Estudos empíricos recentes em Itália mostram que, além da sobrecarga objetiva, fatores pessoais (traços de personalidade) e a falta de atividades de lazer/proteção profissional influenciam a propensão ao burnout.
Repensar a Europa dos três (E-3)
DA EUROPA ARMADA À EUROPA PENSANTE
O Vírus da
Guerra
Imagine a guerra não como um incêndio ocasional, mas como uma doença crónica
que se instala no corpo da Europa. Com este artigo pretendo alertar para o
facto de estarmos a normalizar o conflito. O rearmamento acelerado e a narrativa
de que a guerra é inevitável não são só decisões políticas, são uma mudança
profunda na nossa alma coletiva. A Europa está a trocar o seu projeto de paz
por um colete blindado. Cega parece seguir os interesses de uma Europa dividida
e determinada pela Europa dos três (E-3).
O Antídoto
Ético: Uma Paz que Desarma
No meio deste ruído de armas, surge uma voz rara e corajosa: a da Conferência
Episcopal Italiana. Com a sua Nota Pastoral "Educar para uma paz desarmada
e desarmante", eles não propõem uma paz frágil, mas uma força ativa. É um
apelo para desarmarmos os nossos espíritos antes de pensarmos em desarmar os
exércitos. É o primeiro grande contraponto a uma cultura que está a adormecer
para o horror.
A Amnésia
Perigosa: A Alemanha Esquece as Lições
A Alemanha, outrora guardiã da memória dos horrores da guerra, tornou-se a
principal motorista do rearmamento. É como se um ex-fumante, curado de um
cancro, começasse a vender cigarros. Chama-se a Alemanha à atenção de uma
"amnésia estratégica": a sua verdadeira segurança sempre veio da
cooperação, não das armas. Ao abraçar cegamente a lógica da NATO, Berlim está a
desistir de pensar uma Europa autónoma e a empurrá-la para o abismo de um
confronto sem fim com a Rússia.
Os Arquitetos
da Divisão: NATO e Reino Unido
A NATO já não é só um guarda-chuva defensivo; tornou-se um professor que dita o
que uma sociedade deve pensar e valorizar. A exigência de se gastar 5% do PIB
na defesa é a receita para militarizar não só os orçamentos, mas também as
nossas mentes. Paralelamente, o Reino Unido, após o Brexit, age como um
"sismógrafo do caos": para se manter relevante, semeia a divisão no
continente, uma estratégia antiga das potências marítimas que deixa a Europa
mais frágil e instável.
A Europa sem
Bússola: Reagir sem Pensar
Aqui está a metáfora central: a União Europeia parece um barco à deriva, sem
leme nem mapa. Reage às ondas (as crises), mas não sabe para que porto quer
navegar. A EU movida pela EU-3 esquece um facto geográfico crucial: a Europa é
uma península da Ásia. Tentar isolar ou humilhar a Rússia é como tentar separar
o quarto da casa em que se vive. A verdadeira segurança só pode ser construída com o vizinho, nunca contra ele. «Quem cava uma cova para
os outros, cai nela», diz um provérbio.
A Escravatura
Invisível: O Neocolonialismo das nossas Mentes
O colonialismo de outrora roubava terras e corpos. O de hoje é mais insidioso:
rouba o nosso pensamento. Através de uma informação centralizada e de
narrativas simplistas e maniqueias, somos condicionados a aceitar a guerra como
normal. É um "colonialismo mental" que nos escraviza desde a
infância, fazendo-nos temer e odiar antes mesmo de podermos refletir. A guerra
já não precisa de ser declarada; ela já venceu quando se instala no nosso
inconsciente. E no neocolonialismo das mentes estabelece-se um regime
sustentável das elites em que já não é a humanidade nem o humanismo que contam,
mas o funcionamento da máquina. O argumento da guerra no seguimento do regime
COVID-19 prepara os espíritos para a servilismo total.
Quem paga a
Conta é o Povo. Quem lucra são as Elites e as Potências.
Uma verdade antiga e cruel: as guerras são decididas em gabinetes luxuosos, mas
pagas com o sangue dos filhos das famílias comuns. Enquanto a indústria bélica
e as elites políticas e financeiras lucram com o medo, a paz torna-se um perigo,
porque exige justiça, transparência e cooperação, que ameaçam os seus
interesses.
A grande
Viragem seria investir na Paz como Estratégia
E se, em vez de gastarmos milhares de milhões em armas, investíssemos o mesmo
numa "Cultura da Paz"?
Seria de começar com essa revolução:
- Educação para o pensamento crítico.
- Diplomacia ativa e preventiva.
- Justiça social como a melhor política de segurança.
- Media diversificados e descentralizados mais conformes com um regime democrático.
- Cooperação
global que leva
desenvolvimento, e não apenas exploração.
Isto não é um sonho ingénuo; é o único plano realista de sobrevivência a longo
prazo.
Conclusão: A
Encruzilhada Final
A Europa está numa encruzilhada histórica:
- Caminho 1: Ser uma "Europa Armada", rica em armas, mas pobre em consciência, subalterna, dividida e reativa.
- Caminho 2: Ser uma "Europa Pensante e Consciente", que investe na paz como força civilizacional iniciando finalmente o processo de realizar o ideal cristão da irmandade entre todos os humanos e entre todos os povos.
A pergunta final do artigo é uma faca na consciência coletiva: Que tipo de humanidade queremos promover? Financiar a guerra é fácil e dá votos a curto prazo. Construir a paz exige coragem, paciência e uma visão que vai além do próximo ciclo eleitoral. A verdadeira segurança começa no dia em que a guerra deixa de ser sequer imaginável.
Sintetizando
A Europa está a adoecer da "normalização da guerra", guiada pela
amnésia da Alemanha, pela lógica divisionista da NATO/Reino Unido e pela sua
própria falta de visão. Estamos a trocar o projeto de união por um pesadelo de
militarização e colonialismo mental, onde as elites lucram e o povo paga. O
antídoto? Uma audaciosa "Cultura
de Paz", financiada com a mesma verba que se destina às armas. A
escolha é entre sermos um forte militar ou uma luz para o mundo.
António da Cunha Duarte Justo
Resumo do artigo integral em Pegadas do Tempo: https://antonio-justo.eu/?p=10478
segunda-feira, 8 de dezembro de 2025
MARIA E A EMERGÊNCIA DE UMA NOVA VISÃO DO REAL
Teologia, Filosofia e Ciência em Diálogo
A celebração da Imaculada Conceição, a 8 de dezembro, confronta o pensamento contemporâneo com uma questão decisiva: que tipo de realidade admitimos como real? Num mundo moldado pelo paradigma científico-técnico, e da velha Física, tende-se a reconhecer como verdadeiro apenas o que é mensurável, repetível e empiricamente verificável. Contudo, tanto a filosofia moderna como a ciência contemporânea mostram que esta redução é epistemologicamente insustentável.
O símbolo como acesso ao real
A filosofia hermenêutica e fenomenológica (Husserl, Ricoeur) recorda que o símbolo “dá que pensar”: ele não explica, mas revela uma profundidade de sentido inacessível à mera descrição factual. Assim, quando a fé cristã afirma que Maria concebeu sem intervenção sexual, não pretende competir com a biologia, mas introduzir uma afirmação ontológica: a origem última do humano não se esgota na causalidade material.
Do mesmo modo que a ciência utiliza modelos e metáforas, ou seja, campo, onda, big bang, matéria escura, para falar do que não é diretamente observável, também a teologia recorre ao mito e ao dogma como linguagens simbólicas de uma verdade experiencial que se mantém válida para além do tempo histórico (mantendo a tensão entre o tempo Cronos e o tempo Cairos).
Conhecimento, consciência e limites da objetividade
Desde Kant sabemos que o conhecimento não é mero reflexo da realidade em si, mas resultado de uma interação entre sujeito e objeto. “A coisa em si” permanece sempre além da plena apreensão. A ciência contemporânea confirmou essa intuição filosófica: na física quântica, constatando que o observador não é neutro. Segundo Niels Bohr, não há fenómeno sem observação; em Heisenberg, a realidade observada depende do modo como é interrogada.
Esta constatação aproxima surpreendentemente ciência e teologia: ambas reconhecem que o real é mais vasto do que o real medido. A concepção virginal inscreve-se precisamente nesta intuição: fala de um acontecimento que não pode ser explicado por causalidade linear, mas que emerge de uma dimensão mais profunda da realidade.
Virgindade e novo paradigma ontológico
A virgindade de Maria aponta simbolicamente para um novo paradigma ontológico: o ser não é apenas efeito de causas anteriores, mas emergência, dom, novidade radical. As ciências da complexidade e da emergência (Prigogine, Morin) mostram que sistemas vivos produzem novidades não redutíveis às suas condições iniciais. O todo é mais do que a soma das partes.
Neste horizonte, o dogma da Imaculada Conceição afirma que a humanidade conhece, em Maria, uma origem não determinada pelo peso do passado, mas aberta ao futuro. Trata-se de uma antropologia da esperança, profundamente atual num tempo marcado por determinismos biológicos, sociais e tecnológicos.
Encarnação e superação da dualidade
A modernidade herdou uma visão dualista: espírito versus matéria, sujeito versus objeto, fé versus razão. Ora, tanto a teologia cristã como a física contemporânea caminham no sentido inverso: a realidade é relacional. A Trindade cristã pode ser lida como a forma simbólica mais radical dessa intuição: ser é ser-em-relação.
Em Jesus Cristo, concebido no seio de Maria, não há rejeição da matéria, mas a sua reabilitação plena. Deus não se opõe ao mundo, mas participa nele. Heidegger afirmava que a verdade acontece (Ereignis); não é posse, mas desvelamento. Neste sentido, a encarnação é o desvelamento máximo do sentido do real.
Maria, feminino simbólico e crítica à modernidade
Num contexto cultural dominado pela racionalidade instrumental e pela funcionalização do corpo, Maria surge como figura crítica. A sua virgindade não é negação da sexualidade, mas protesto simbólico contra a absolutização do desejo e a redução da pessoa a objeto. Leonard Boff lembra que nela emergem os traços maternais de Deus, silenciados por uma tradição excessivamente patriarcal e racionalista.
A figura de Maria restitui à linguagem religiosa o seu caráter poético e relacional, mais próximo da arte e da mística do que da engenharia social (de matriz masculina). A poesia, como a física moderna, aceita o paradoxo; sabe que há verdades que só podem ser ditas por aproximação.
Conclusão: uma verdade em processo
A Imaculada Conceição não pertence apenas a uma mera ordem do “facto verificável”, mas da verdade existencial e transcendente. É uma verdade que acontece continuamente, sempre que o humano se abre ao dom, ao futuro e à transcendência. Assim como a ciência abandonou a ilusão da objetividade absoluta, também a teologia é chamada a libertar-se de leituras literalistas e defensivas.
Maria permanece como sinal de que a realidade é mais ampla do que aquilo que medimos, e de que o humano é, em última instância, um ser espiritual em devir, chamado a dar à luz o divino no coração do mundo.
“A verdade não é algo que possuímos, mas uma
realidade que nos envolve e transforma.”
(K. Rahner)
Parabéns a todas as mães biológicas, espirituais e simbólicas.
António da Cunha Duarte Justo
Teólogo e Pedagogo
domingo, 7 de dezembro de 2025
Voz da Igreja Católica Italiana: Uma voz no Deserto?
EDUCAR PARA UMA PAZ DESARMADA E DESARMANTE
Na recente “Nota Pastoral” da Conferência Episcopal Italiana (CEI), publicada em 5 de dezembro de 2025 sob o título: “Educar para uma paz desarmada e desarmante”, os bispos italianos tornam-se na consciência crítica à onda de armamento na Europa apresentando um contraponto moral e cultural à espiral de rearmamento. Já no Jubileu do Mundo Educativo o Papa Leão XIV afirmado que “uma educação desarmante e desarmada cria igualdade e crescimento para todos”.
O objetivo central da nota dos bispos reunidos em Assisi é “redescobrir a centralidade de Cristo como fundamento da paz „ e chamar comunidades, fiéis e sociedade a adotarem uma “cultura de paz” e “não de violência”.
Diagnósticos que fundamentam a exigência de um apelo à paz
A Escalada de conflitos e risco nuclear:
- O documento da CEI assinala um crescimento do “nível de conflitualidade entre as grandes potências”, com a possibilidade, por vezes real, de “escalação nuclear”, o que gera angústia e “erosão da esperança”, especialmente nas novas gerações.
- A guerra, com suas “inúteis carnificinas”, muitas vezes de civis e crianças e a lógica da “dissuasão armada” são vistas como moral e socialmente insustentáveis.
Crescente investimento militar e mercado de armas
A nota denuncia o crescimento acelerado dos gastos militares: segundo o documento, o gasto militar mundial em 2024 ultrapassou 2,7 trilhões de dólares. Esse montante, observa a CEI, desvia recursos necessários para construir um mundo habitável: combater fome, pobreza, crises ambientais e promover um desenvolvimento humano.
A CEI chama atenção para quem lucra com o comércio e a produção de armas, inclusive bancos e investidores e convida para o desinvestimento (objeção financeira) dessas indústrias.
Desconfiança da lógica do “rearmar para defender”
A argumentação central é que a necessidade de defesa não pode ser usada como pretexto para uma corrida aos armamentos. A CEI considera “contraditórias” as políticas de pesados investimentos bélicos adotadas desde a invasão da Ucrânia pela Rússia.
A nota convoca a União Europeia a retomar o caminho da paz, construído no pós-Segunda Guerra Mundial, ao invés de transformar a segurança num negócio de armas e poder militar.
Propostas e orientações da CEI
A CEI não se fica só pelo diagnóstico, ela sugere uma série de caminhos práticos e culturais para enfrentar a crise da paz:
- Educar consciências: as comunidades cristãs (paróquias, dioceses), famílias, escolas — todos devem promover “a cultura da paz, do diálogo, da misericórdia, da fraternidade e do respeito mútuo”.
- Serviço civil obrigatório em vez de serviço militar obrigatório: como alternativa à militarização, a nota propõe a instituição de um serviço civil obrigatório para os jovens, como forma de investir em paz, solidariedade e cuidado social.
- Rever a presença religiosa nas forças armadas: a CEI questiona o papel dos “cappellani militari” integrados ao aparato militar, sugerindo formas de assistência espiritual não vinculadas diretamente às forças armadas.
- Objeção financeira: incentivar indivíduos e instituições a desinvestirem de empresas e indústrias armamentistas.
- Construção de “casas de paz”: cada comunidade cristã é convidada a tornar-se “uma casa de paz e de não-violência”, cultivando justiça, perdão, diálogo, acolhimento e solidariedade.
- Aposta na justiça restaurativa e cuidado da Criação: a paz — para a CEI — não é apenas ausência de guerra, mas justiça social, reconciliação, cuidado com o meio ambiente e com o humano.
Tom teológico e ético: paz como chamamento existencial e comunitário
- A CEI reafirma que a paz não é uma abstração ou opção política neutra, mas um compromisso radical inspirado no Evangelho. A “regra da paz” exige um “exercício global e cotidiano” de misericórdia, fraternidade, cuidado pelo outro em oposição à lógica da força.
-A nota retoma o ensinamento de Papa Francisco (e de Fratelli tutti) de que a paz exige conversão cultural e ética: não basta evitar guerras, é preciso construir comunidades que pratiquem justiça, reconciliação e solidariedade.
- Para a CEI a paz não é passiva: é um esforço ativo, “desarmado e desarmante”, que rejeita a lógica da detenção do poder militar como condição de segurança.
Relevância para o contexto atual da Europa e implicações para a Alemanha
Considerando a crescente militarização e os debates sobre defesa na Europa (incluindo países como a Alemanha), a nota da CEI destaca-se como um contraponto moral e cultural à espiral de rearmamento. Algumas implicações que podem fomentar uma atitude crítica:
- Crítica à “segurança pela arma”: ao questionar investimentos massivos em armamento e afirmar que a defesa não justifica o rearmamento global, a CEI sugere que a lógica da segurança militar permanente é autodestrutiva, especialmente num continente com tensões históricas e memória de guerras.
- Alternativas concretas de paz e segurança: propostas como serviço civil obrigatório, desinvestimento da indústria bélica, justiça restaurativa, acolhimento, solidariedade, oferecem alternativas à militarização, valorizando coesão social, bem-estar, dignidade humana e ecologia.
- Apelo à Europa como agente de paz e de integração: a CEI entende que a União Europeia não deve tornar-se um bloco de “poder militar”, mas um espaço de cooperação, diálogo e convivência, visão esta que desafia nacionalismos e retóricas securitárias.
- Dimensão ética e espiritual: num momento de crise de valores, desemprego, polarização social, crises de refugiados e xenofobia, a nota oferece um referencial ético profundo de reconciliação, acolhimento, cuidado com a fragilidade humana como alternativa à escalada armamentista.
- Prevenção de lógicas de guerra como cultura dominante: a CEI adverte que o apego à “ameaça” e à produção/negócio de armas pode normalizar a guerra como meio de resolução de conflitos, é algo perigoso para a paz duradoura e para a promoção dos direitos humanos.
António da Cunha Duarte Justo
Pegadas do Tempo: https://antonio-justo.eu/?p=10466
