Irritação entre Igreja ortodoxa e Igreja católica
As sociedades em desenvolvimento natural ou em processo de afirmação precisam, de um tecto metafísico que lhes dê consistência e uma cobertura possibilitadora de identificação e de fomento de comunidade. Na China temos o comunismo/confucianismo, no Ocidente os valores
e direitos humanos (cristianismo), na Rússia a Ortodoxia, em países de cultura
árabe o islão, na Índia o induísmo…
Em entrevista (1) o Papa Francisco criticou o Patriarca ortodoxo
Cirilo I por não se distanciar de Putin na guerra com a
Ucrânia dizendo que o Patriarca não
deveria ser um “ministro de Putin„ (ministro/servidor)! Francisco afirmou
também que “o verdadeiro "escândalo" da guerra de Putin era "o
ladrar da NATO às portas da Rússia", fazendo com que o Kremlin
"reagisse erradamente e desencadeasse o conflito"!
Na
realidade, o argumento “desnazificar a Ucrânia”, usado por Putin para invadir o
país, é inadmissível e situa-se na mesma lógica imperialista de intervenções
levadas a efeito pelos EUA/NATO em nome da defesa dos valores europeus que diziam
defender na terminada guerra do Afeganistão, etc.! Esta lógica, sempre nas mãos
de potências fortes (tal como o recurso ao bloqueio Comercial) faz parte das
estratégias elaboradas para afirmar a confrontação/rivalidade e impedir o
surgir de uma cultura que tenha como base e fim a paz entre os povos! Uma
cultura da paz terá de superar a estratégia de visão linear ou causal exclusiva
para passar a uma estratégia de visão multifacetada numa relação de complementaridade inclusiva.
Não há perspectiva sem paisagem; o mesmo se diga do texto e do
pensamento que carece sempre do seu enquadramento cultural, a paisagem cultural
(mental-emocional-social) envolvente para poder ser compreendido (o compreender
possibilita o concordar, o discordar ou a alternativa)! O enquadramento do
texto no seu contexto viabiliza observar conotações e denotações e deste modo a
hipótese de uma observação mais diferenciada com conclusões mais aferidas e
como tal mais comedidas!
Uma análise dos diferentes “biótopos” culturais e
correspondentes condicionantes possibilitaria uma ampliação de horizontes que
proporcionaria ultrapassar preconceitos de mentalidades produzidas dentro de
modelos que se afirmam na forma adversativa!
A crítica do Papa causou bastante
descontentamento no Patriarcado de Moscovo resfriando as relações com o
Vaticano. O Papa tem razão porque a guerra não poderá ser
legitimada cristãmente!
O
Patriarca Cirilo I na qualidade de chefe religioso encontra-se entre a espada e
a parede; entre a fidelidade ao evangelho e o papel institucional político
(poder)! As relação igreja-estado vão-se
adaptando à consciência social e histórica de cada sociedade!
Na
Rússia a ortodoxia revela-se como factor de identificação nacional e de união
do seu povo; o comunismo já não serve a unidade, a ortodoxia compensa essa
falta de que se socorre o poder secular em termos de complementaridade. Na
relação Estado-Igreja, Cirilo deu prevalência à perspectiva cristandade
descurando a do cristianismo!
Um outro aspecto
a ter em consideração reside nas distintas velocidades a que andam as
diferentes culturas em termos de sua contextualização e factores de
identificação; estas expressam-se nas
sociedades e na História (sociologia, política…) com rosto próprio, o que não
legitima uma cultura arrogar-se o direito de condenar ou se impor à outra e
para mais numa situação em que se encontram razões de Estado frente a frente.
É um facto que a Rússia, o maior país do mundo, com
diferentes povos e como tal terá uma dinâmica estatal interna muito diferente
da de um Portugal homogénio; seria
cínico o argumento de que uma “superioridade” de valores europeus - direitos
humanos, etc – pudesse constituir argumento para motivar a subjugação russa ao Ocidente
ou possa até ser usada como motivo de guerra. Este
é um argumento hipócrita que o Ocidente usa como pau de dois bicos para
legitimar, por um lado, a sua violência e expressões imperialistas
desestabilizadoras de países, quando por outro lado defende a legítima liberdade
de autolegitimação dos povos indianos na América latina no direito à sua
autonomia!
O Ocidente, constituído por unidades de
povos mais ou menos homogéneos, usa hipocritamente de um argumento para se
insurgir contra centralismos que não respeitam as identidades legítimas nos
seus países e, em seu benefício, faz uso do argumento da democracia e dos
direitos humanos para intervir e desestabilizar povos multiculturais onde a
colonização interna ainda se encontra em processo. Deste modo, o imperialismo
económico junta-se ao mental servindo-se de expressões moralistas como
legitimadores do fomento de estruturas de violência.
A consciência, a nível social e
individual, de cada cultura adapta-se paulatinamente ao desenvolvimento das
suas circunstâncias históricas (numa correlação mais ou menos emancipatória de medida
de forças entre indivíduo (grupos cívicos) e instituição); da afirmação dos
vários grupos dentro de cada sociedade num encadeamento de
concorrência-colaboração-dispersão entre eles e também numa relação de
interculturalidade se vão criando novas expressões de Estado. Imagine-se que as
verbas que as potências disponibilizam para a guerra fossem aplicadas no
desenvolvimento económico dos povos! O desenvolvimento e a “justiça” que querem
provocar através de guerras seria mais eficiente se fosse aplicado nos
enriquecimentos dos correspondentes povos!
O Estado ao
deixar de ser confessional devido ao surgir de grupos, ideologias e
mundividências concorrentes é levado a cortar o cordão umbilical com a Igreja e
vice-versa (igreja que abrigava tendências concorrentes sob o mesmo
tecto). À medida que se processa uma emancipação, normal ou exagerada do indivíduo
em relação à comunidade, vão surgindo novas formas políticas de adaptação ao
cidadão que se afirma no princípio da liberdade e como tal, na ênfase dos
direitos humanos.
Podemos observar que com o protestantismo (sec. XVI), apesar dos seus
aspectos positivos, se expressou um certo extremo de emancipação do crente em
relação à comunidade religiosa, levando-o, porém, a um certo encosto ao poder
secular. No Catolicismo tem-se mantido ou
procurado manter uma certa balance de equilíbrio na relação e interdependência
de crente-comunidade e como o crente é ao mesmo tempo cidadão houve um
correspondente desenvolvimento nas relações Estado-Igreja que vinha da
admoestação de Jesus: “A Deus o que é de Deus e a César o que é de César”!
Na consciência social histórica o caracter religioso
divino-humano (da filiação divina) determinou a definição da pessoa humana como
soberana em relação às instituições (daí a ilegitimidade da pena de morte no
consenso cristão); a dignidade humana foi sendo assumida na sociedade secular
ocidental através da afirmação da liberdade humana e dos direitos humanos! O
mesmo se pode observar historicamente na Europa onde a assistência educacional
e de saúde foi passando dos conventos para a assistência social do Estado.
Atualmente,
uma vontade política secular ocidental, partindo da sua consciência histórica
vigente, reage de maneira exacerbada em relação à Ortodoxia, o que seria compreensível
em termos de cristianismo, mas o que move as potências ocidentais tal como a
federação russa não é o cristianismo, mas o poder político e económico de
domínio a disputar-se entre a Rússia e a Nato, o que por outro lado leva a
ortodoxia a reagir de modo a optar no sentido cultural de cristandade! (O que
as elites ocidentais exageram no sentido secular talvez a Rússia esteja a
exagerar no sentido religioso; das sociedades muçulmanas e hindus, não se fale!)
A discussão torna-se desequilibrada tendo em conta a
perspectiva de observação relativo ao processo de aculturação-inculturação-secularização
em relação ao cristianismo e aos povos/sociedades/culturas onde se encontra
inserido. Se
Cirilo I comete o erro de comprometer demasiado a igreja com o Estado, o
Ocidente comete o erro de, por razões óbvias de poder, querer ver a sociedade
russa desunida para mais facilmente ser desmembrada e, enfraquecida, tornar-se
mais acessível ao poder ocidental! Daí ser muito necessário o espírito de
discernimento ao avaliarem-se fenómenos como os que acontecem agora em
atmosfera de guerra! (De não esquecer que uma das acções de empenho do Ocidente
na Ucrânia foi dividir a ortodoxia na Ucrânia anos antes da intervenção de 24
de fevereiro!
Lamentavelmente,
a opinião pública é induzida em erro ao ser levada a pensar que em política se
trata de humanismo e não de poder, de moral e não de interesses bem egoístas
que por vezes se resumem em “razões de Estado” à mistura de interesses das
elites, mas apresentados às populações
como se se tratasse só de aspectos humanos morais em benefício delas! Por
outro lado, muitos cidadãos cristãos do Ocidente são levados a criticar
severamente o Patriarca ortodoxo não notando que estão a ser levados de Pontius
Pilatos para Herodes e vice-versa! Não tem havido um discurso democrático
humano no espaço público e o que existe está agora a desenvolver uma dinâmica
perigosamente destrutiva. A fim de se ultrapassar a divisão entre Oriente e
Ocidente, divisão esta que atravessa também a nossa sociedade, é necessário
aprender de novo a argumentar segundo o método da controvérsia (2), de maneira
a adoptar-se um discurso humano inclusivo que, movido pelo respeito, omita a
discriminação e a exclusão.
O governo de
Moscovo e a jerarquia ortodoxa ainda caminham em colaboração numa presumível
intenção de defesa nacional pelo que, como sistema fechado,
permanece um dogmatismo próprio sem grande lugar para relaxamento, mas que, na melhor das hipóteses poderia dar origem a grupos, ancorados na sua própria cultura,
possibilitadores do surgir de uma democracia de baixo para cima e não como
aspiraria o ocidente, de grupos meramente poderosos de domínio do homem sobre o
homem!
A abertura ou liberalização da Nação (união de
Deus-Pátria-família) é processual e a mundivisão
que atualmente domina o Ocidente é que do dueto Igreja-Estado se passe a uma
sinfonia político-cultural. A sinfonia torna-se, porém, disfónica dado o facto
de termos uma democracia partidária também com um organigrama piramidal baseada
no poder e não na relação humana orgânica; a perspectiva continua a ser o
vértice da pirâmide e não a sua base numa estratégia de dividir e não de unir para
melhor assegurar o poder de alguns (o poder e a decisão em vez de se operar
no sentido de baixo para cima opera-se no sentido de cima para baixo). Como é
natural, tudo olha para cima, para Deus, para o Sol, sem ter em grande conta a elevação,
divindade e luz que brilha no interior da comunidade humana e em cada um (JC
como protótipo do humano)! Neste sentido seria necessária uma nova impostação
individual, social e institucional que partisse da consciência da base (pessoa
e comunidades de vida), num actuar de democracia de base, e como tal da “aldeia”
para a região e da região para a nação e da nação para confederações
internacionais e não no sentido inverso de um globalismo controlador imposto de
cima para baixo como observamos no sistema liberal capitalista e no socialismo
e resumido no sistema chinês (3)!
O direito
socializa-se passando-se de um direito dual (Igreja-Estado) para um direito
plural (concorrência de interesses expressa em partidos).
Será do interesse do Estado manter sempre uma boa relação
com as confissões religiosas até para não provocar a afirmação de confissões
que unam o direito de Deus ao de César na própria comunidade, o que poderia
tornar-se problemático num sistema secular pluripartidário meramente ligado a
interesses civis (porque razões de poder poderiam levar grupos religiosos a
organizarem-se em partidos com consequências imprevisíveis para a sociedade ocidental… (a ponto de poder
criar uma relação social político-religiosa
como se pode observar nas sociedades de religião muçulmana onde culto
privado e culto público se unem dando-lhe maior consistência e
sustentabilidade! As junções de poderes nas sociedades republicanas poderiam
tornar-se num perigo para república laica.
Terá que haver sempre uma colaboração entre a ordem
espiritual e a ordem secular no seguimento bipartido ocidental: a Deus o que é
de Deus e a César o que é de César.
O
Constantinismo conduziu a uma certa secularização do cristianismo e, por outro,
a uma certa cristianização dos órgãos de poder (Criou-se também uma relação mais
no sentido de cristandade do que de cristianismo genuíno)! Que Constantino
tenha adoptado o Cristianismo e o tenha instrumentalizado como ferramenta para
adiar a queda do império romano só revela a inteligência política de
Constantino que tinha feito as suas experiências em terras ibéricas e sabia
equacionar os problemas reais do império romano!
O secular e o natural têm de coexistir numa correlação
complementaridade, tal como acontece na ordem da vida.
Para se avaliar diferentes biótopos
culturais são necessárias criatividade e
multi-perspectivas de observação para possibilitar a criação de impulsos
inovadores na sociedade civil e religiosa.
Numa época em que todos os bons espíritos nos
abandonaram, precisamos de reflectir para agir humanamente! Urge uma mudança de paradigma no
tratamento da diversidade cultural do outro (parceiro e adversário), de maneira
a permitir um fluxo na transversalidade e não de cima para baixo. Em vez de se cultivar um discurso/diálogo num
contexto orientado para a negatividade ou para o défice, o respeito e a
compreensão cultural da diferença deverão conduzir a uma transversalidade de
ideias e atitudes pela positiva e a reconhecer nelas potencialidades
enriquecedoras de um lado e do outro, de maneira a poder-se encetar um caminhar
comum! Interessante para a ordem do dia seria o que nos une e não o que nos
separa!
António da Cunha Duarte Justo
Teólogo e
Pedagogo
Pegadas do Tempo,
https://antonio-justo.eu/?p=7509
(1) https://antonio-justo.eu/?p=7410
(2) https://antonio-justo.eu/?p=3336
(3) Uma unidade que por um lado favoreceria a razão de
Estado é contrariada por diversificações do cidadão e das diferentes
organizações ou cooperações concorrentes dentro do Estado numa diferenciação de
interesses quer religiosos quer civis: ao deixar de haver um tecto religioso
unitário de uma sociedade e paralelamente ao processar-se uma diferenciação de mundivisões civis dentro de
um estado, a obediência civil que antes
era indiferenciada passa a diferenciar-se também ela (concretizada em partidos
e confissões religiosas) e assim em vez de termos o ceptro religioso e o ceptro
monárquico passou o poder, com a República de espírito maçónico, a
diferenciar-se de maneira acentuada entre o ceptro religioso de um lado e do
outro o ceptro secular, uma espécie de monarquia sem ceptro (república) que em
vez do rei tem o Presidente e o parlamento..